Páginas

OS PROBLEMAS DA INTERPRETAÇÃO BÍBLICA.


Um dos maiores motivos por que a Bíblia é um livro difícil de entender é o fato de ser antigo. Os cinco primeiros livros do Antigo Testamento foram escritos por Moisés em 1400 a.C., aproximadamente. Apocalipse — o último livro da Bíblia — foi escrito pelo apóstolo João por volta de 90 d.C. Portanto, alguns dos livros foram escritos há mais ou menos 3 400 anos, sendo que o último deles há cerca de 1900 anos. Isto mostra que, na hermenêutica, precisamos tentar transpor vários abismos que se apresentam pelo fato de termos em mãos um livro tão antigo.
O abismo do tempo (cronológico)
Devido à gigantesca lacuna temporal, um abismo enorme separa-nos dos autores e dos primeiros leitores da Bíblia. Como não estávamos lá, não podemos conversar com os autores e com os primeiros ouvintes e leitores para descobrir de primeira mão o significado do que escreveram.
O abismo do espaço (geográfico)
Atualmente, a maior parte dos leitores da Bíblia vive a milhares de quilômetros de distância dos países onde se deram os fatos bíblicos. Foi no Oriente Médio, no Egito e nas nações mediterrâneas meridionais da Europa de hoje que as personagens bíblicas viveram e peregrinaram. A área estende-se desde a Babilônia, no que é hoje o Iraque, até Roma (e talvez a Espanha, se é que Paulo foi até lá), Essa distância geográfica deixa-nos em desvantagem.
O abismo dos costumes (cultural)
Existem grandes diferenças entre a maneira de agir e de pensar dos ocidentais e a das personagens das terras bíblicas. Portanto, é importante conhecer as culturas e os costumes dos povos dos tempos bíblicos. Muitas vezes, a falta de conhecimento de tais costumes gera interpretações errôneas. Por essa razão, dedicamos um capítulo inteiro deste livro a essa questão.
O abismo do idioma (lingüístico)
Além dos abismos temporal, espacial e cultural existe ainda enorme lacuna entre nossa forma de falar e de escrever e a dos povos bíblicos. Os idiomas em que a Bíblia foi escrita — hebraico, aramaico e grego — têm sin¬gularidades estranhas à nossa língua. Por exemplo, no hebraico e no aramaico dos manuscritos originais do Antigo Testamento só havia consoantes. As vogais estavam subentendidas e, portanto, não eram escritas (embora os massoretas as tenham acrescentado séculos mais tarde, por volta de 900 d.C). Além disso, tanto o hebraico quanto o aramaico são lidos da direita para a esquerda, e não da esquerda para a direita. Ademais, não havia separação entre as palavras. As palavras escritas nessas três línguas bíblicas emendavam-se umas às outras.
Poderíamos exemplificar isso em português da seguinte forma: HCTMDVSCRP. Lendo da direita para a esquerda, o hebreu logo perceberia quatro palavras, que em português seriam: PRCSV D M TCH. Não é muito difícil deduzir o significado da frase: ''Precisava de um tacho". Por outro lado, as letras TCH também poderiam ser interpretadas como tocha ou tacha, além de tacho. Então, como é que um leitor saberia qual a palavra pretendida? Normalmente, podia-se depreender o significado pelo contexto. Se nas frases anteriores ou posteriores houvesse uma referência a tacho, tudo indica que a frase em questão também se referisse a um tacho. Mas às vezes o contexto não dá nenhuma indicação, e, assim, torna-se um problema de interpretação saber qual era realmente a palavra em questão.
Outra dificuldade imposta pelo abismo lingüístico é o fato de que as línguas bíblicas originais continham expressões incomuns ou de sentido obscuro, difíceis de compreender em nosso idioma. Além do mais, certas palavras só aparecem uma vez na Bíblia inteira, tornando impossível qualquer comparação com seu uso em outro contexto, o que nos ajudaria a entender seu significado.
Outro problema que agrava esse abismo lingüístico é a transmissão dos manuscritos originais até a atualidade. Quando os escribas os copiavam, vez por outra cometiam erros. As vezes um escriba lia um manuscrito para outro escriba. O copista anotava a palavra correspondente ao som que lhe chegava aos ouvidos. A frase "A sessão será aqui" pode ser escrita "A seção será aqui". Podia acontecer de um copista trocar uma letra por outra de escrita muito semelhante. As letras d e r do alfabeto hebraico são parecidas (embora não idênticas), assim como o w e o y. As vezes uma palavra era repetida; outras vezes, saltada. Se um manuscrito contivesse alguns erros dessa natureza, eles poderiam ser reproduzidos pelo próximo copista, que estaria, assim, passando aquele texto talvez a várias "gerações" de manuscritos. Em outras ocasiões, porém, o escriba corrigia a palavra ou letra que lhe parecia estar errada. O processo de tentar descobrir quais textos são os originais é chamado de crítica textual. Entretanto, essas variações não afetam as principais doutrinas das Escrituras, tampouco influenciam a doutrina da inerrância dos textos bíblicos, relativa aos manuscritos originais, não às cópias.
O abismo da escrita (literário)
Existem diferenças entre os estilos e as formas de escrita dos tempos bíblicos e os do mundo ocidental moderno. Dificilmente nos expressamos com provérbios ou parábolas, no entanto grande parte da Bíblia foi escrita em linguagem proverbial ou parabólica. Além disso, o fato de os livros bíblicos terem sido escritos por cerca de 40 autores humanos pode representar um problema para os intérpretes da Bíblia. Por exemplo: o autor de um dos evangelhos afirmou que havia um anjo no túmulo vazio de Jesus, ao passo que outro fez menção de dois anjos. A linguagem figurada, que era usada com freqüência, às vezes dificulta nossa compreensão. Vejamos por essas declarações de Jesus: "Eu sou a porta" e "Eu sou o Pastor". Evidentemente, ele não quis dizer que era literalmente feito de madeira com dobradiças, nem que possuía ovelhas de verdade e as apascentava no campo. Cabe ao intérprete tentar apurar o que Jesus de fato quis dizer com tais afirmações.
O abismo espiritual (sobrenatural)
É importante ressaltar também que existe um abismo entre a maneira de Deus agir e a nossa. O fato de a Bíblia ser um livro sobre Deus coloca-a numa posição sem-par. Deus, que é infinito, não pode ser plenamente compreendido pelo que é finito. A Bíblia relata os milagres de Deus e suas predições sobre o futuro. Ela também fala de verdades difíceis de ser assimiladas, tais como a Trindade, as duas naturezas de Cristo, a soberania de Deus e a vontade humana. Todos estes fatores, somados a outros, agravam a dificuldade que temos de entender plenamente todo o conteúdo das Escrituras.
Visto que Deus é o Autor divino da Bíblia, ela é um documento absolutamente singular. E única no gênero. Não constitui simplesmente um livro que retrata os pensamentos do homem acerca de Deus, embora os exponha. Ela expõe também os pensamentos de Deus acerca de si mesmo e do homem. A Bíblia relata o que Deus fez e informa o que ele é e deseja. É também um livro raro no sentido de que foi escrito por Deus e pelo homem. Autores humanos escreveram-na sob a orientação do Espírito Santo (2 Pe 1.21). Esta dupla autoria gera dificuldades. Como Deus pôde usar pessoas com personalidades diferentes para registrar as Escrituras e, ao mesmo tempo, o resultado final ser obra do Espírito Santo? Como esse fato influía na personalidade e no estilo literário de cada autor?
Esses seis abismos representam problemas graves quando se tenta compreender a Bíblia. Até mesmo o etíope de Atos 8 deparou com várias delas, incluindo a cronológica, a geográfica, a lingüística e a sobrenatural. Se por um lado a maior parte da Bíblia é simples e fácil de entender, por outro é inegável que existem trechos mais difíceis. O próprio Pedro relatou: "... como igualmente o nosso amado irmão Paulo vos escreveu [...] há certas cousas difíceis de entender..." (2 Pe 3.15, 16). Existem versículos da Bíblia que continuam sendo um mistério até para os mais hábeis intérpretes.
Fonte: Roy B. Zuck – A Interpretação Bíblica.

Nenhum comentário:

Postar um comentário