Uma das doutrinas da ortodoxia serviu de transição para o próximo grande movimento - o pietismo. Trata-se da doutrina da ordo salutis, a ordem da salvação, cujo último estágio era a unio mystica, a união mística com Deus. Segundo Lutero, começava aí a fé na justificação. No momento em que a ortodoxia aceitou da tradição eclesiástica a unio mystica como estado definido a ser alcançado, o conceito de fé intelectualizou-se. Lutero afirmava as duas coisas. Na ortodoxia, separaram-se. A fé se tornou a aceitação intelectual da doutrina verdadeira, e a comunhão com Deus, questão de experiência mística. Divide-se o pensamento de Lutero - principalmente do jovem Lutero - em duas partes: o aspecto místico e o aspecto intelectual passam a ser vistos como duas coisas diferentes.
Que é pietismo? O termo é menos respeitado na América do que na Europa. Na Europa, as palavras "piedoso" e "pietista" podem ser usadas normalmente pelo povo. Mas não na América. Aqui, essas palavras conotam hipocrisia e moralismo. Muito embora, pietismo não tenha necessariamente essas conotações. Pietismo é a reação do lado subjetivo da religião contra o lado objetivo. Não há dúvida de que esse lado subjetivo se fazia presente na ortodoxia, mas não significava grande coisa. Na verdade, a ortodoxia vivia na objetividade da organização teológica e eclesiástica. Embora não se deva dar demasiada importância ao fato. Os hinos de Paul Gerhardt, que viveu no período de pleno desenvolvimento desta tendência, demonstram a existência de relação pessoal com Deus. Mas para as massas populares significava à licença para licenciosidade; a situação moral era miseravelmente baixa, especialmente nos paises luteranos, onde o elemento doutrinário era decisivo e não havia disciplina.
Os pietistas, especialmente o maior deles, Filipe Jacob Spener, escreveram referindo-se sempre a Lutero. Spener demonstrou que todos os elementos do pietismo já estavam presentes no pensamento do jovem Lutero, e que a ortodoxia se afastara desses elementos em favor do conteúdo objetivo da doutrina. Tentou mostrar que a ortodoxia assimilara apenas uma faceta do pensamento de Lutero. Nesse sentido o pietismo era justificável. Teve, ainda, enorme influência na cultura como um todo. Spener foi o primeiro a agir em termos de ética social. Os pietistas de Halle fundaram o primeiro orfanato e deram início às primeiras empresas missionárias. A ortodoxia entendia que as nações não cristãs estavam perdidas, porque já haviam recebido a pregação apostólica imediatamente depois da fundação da igreja e a rejeitaram. São Tomé, por exemplo, teria ido à Ásia. Não lhes parecia, portanto, necessário renovar a tarefa missionária. Os pietistas sentiam de maneira diferente. As almas humanas, onde quer que estejam, podem ser salvas por meio da conversão. Começaram, pois, o trabalho missionário em terras estrangeiras, coisa que lhes deu perspectivas históricas mundiais. Homens como Zinzendorf e Wesley olharam para a América enquanto a ortodoxia se confinava às próprias igrejas territoriais.
A liturgia foi também alterada. Uma das mais importantes modificações foi à reintrodução da confirmação, enquanto confirmação do sacramento do batismo. O pietismo é importante para a teologia em três aspectos. Tentou reformar a teologia, a igreja e a moral. Segundo o pietismo, a teologia é disciplina prática. Para se conhecer é preciso, antes, acreditar - antiga exigência da teologia cristã. Essa exigência traz consigo o reconhecimento da importância central da exegese. A importância fundamental recai na teologia do Antigo e do Novo Testamento, não mais na teologia sistemática. Sempre que a teologia bíblica se sobrepõe à sistemática, é quase sempre por causa da influência do pietismo. Antes que o teólogo possa edificar os outros, deve ter sido capaz de se educar a si mesmo.
A igreja não é apenas grupo de pessoas com a finalidade de ouvir a Palavra. Ela se compõe não só de ministros, mas também de leigos. Os leigos devem participar ativamente nas funções sacerdotais em diferentes lugares - às vezes na igreja, mas principalmente em suas casas, em conventículos especiais dedicados à piedade, collegia pietatis, onde se reúnem para cultivar a piedade. Gastam horas inteiras na interpretação da Bíblia, e sublinham a importância da conversão. Dão ênfase especial à ideia de uma ecclesiola in ecclesia, de uma pequena igreja dentro da igreja maior.
O pietismo também influenciou a moral no mundo protestante. No fim do século dezessete, a situação moral na Europa era desastrosa. A Guerra dos Trinta Anos semeara por toda a parte dissolução e caos. A forma da vida tornara-se extremamente bruta e grosseira. Os teólogos ortodoxos não fizeram muita coisa para modificar a situação. Os pietistas, no entanto, procuraram reunir os cristãos individualmente disposto a aceitar o fardo e a libertação da vida cristã. A santificação era a ideia dominante, ênfase comum nos movimentos sectários cristãos. A santificação individual envolvia, em primeiro lugar, a negação do amor pelo mundo. A questão da adiaphoraética adquiriu importância nas discussões com a teologia ortodoxa. (Adiapboron significa o que não faz diferença, sem qualquer relevância ética). Discutia-se a possibilidade da existência de ações humanas destituídas de importância ética, que poderiam igualmente ser feitas ou não. A ortodoxia dizia que era grande o domínio de tal adiaphora. O pietismo não aceitava essa ideia, chamando-a de amor pelo mundo. Como acontece quase sempre em questões desse tipo, Spener mostrava-se benevolente em suas condenações, mas Francke e os pietistas de Halle tornaram-se extremamente radicais. Lutavam contra os bailes, o teatro, os jogos, os vestidos bonitos, os banquetes, as conversações superficiais da vida cotidiana, relembrando em geral a atitude dos puritanos. Em relação a esses fatos, entretanto, eu gostaria de assinalar que não foram tanto os puritanos os responsáveis, foram os movimentos pietistas evangélicos na metade do século dezenove, condenando o fumo, as bebidas e o cinema entre outras coisas.
Os teólogos ortodoxos reagiram firmemente ao ataque dos pietistas. Um deles até mesmo escreveu um livro com o título Malum Pietisticum, Mal Pietista. Degladiaram-se em muitos pontos, mas no final das contas o movimento pietista mostrou-se superior porque se aliava às tendências da época, distante do estrito objetivismo e do autoritarismo dos séculos dezesseis e dezessete, favorecendo o princípio da autonomia surgido nos séculos dezoito e dezenove.
Seria completamente errado colocar o racionalismo do iluminismo em contradição com o misticismo pietista. Afirmar que a razão e o misticismo são pólos opostos não passa de grosseira ignorância popular. Historicamente, o pietismo e o iluminismo lutaram contra a ortodoxia. O subjetivismo do pietismo, ou a doutrina da "luz interior" dos quacres e de outros movimentos de êxtase, têm caráter de imediatez ou de autonomia em oposição à autoridade da igreja. Falando mais claramente, a autonomia racional moderna é filha da autonomia mística da doutrina da luz interior. Essa doutrina é muito antiga; encontramo-la na teologia franciscana da Idade Média, em algumas das seitas radicais (especialmente entre os franciscanos posteriores), em inúmeras seitas do período da Reforma, na transição do espiritualismo para o racionalismo, da crença no Espírito como guia autónomo de cada indivíduo à orientação racional que todas as pessoas possuem em virtude de sua razão autónoma. De uma outra perspectiva histórica, o terceiro estágio de Joachim de Fiori, o estágio do Espírito Santo, está por detrás da ideia presente na burguesia do iluminismo de que já teriam alcançado o terceiro estágio, o estágio da razão, em que os indivíduos são ensinados diretamente. Remontam à profecia de Joel, em que os servos ou empregados são ensinados diretamente pelo Espírito Santo, e ninguém depende de quem quer que seja para receber o Espírito.
Assim, podemos dizer que o racionalismo não se opõe ao misticismo, se, por misticismo, entendemos a presença do Espírito nas profundezas da alma humana. O racionalismo nasceu do misticismo, e ambos se opõem ao autoritarismo da ortodoxia.
Fonte: História Do Pensamento Cristão – Paul Tillich
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