Além de Maria, mãe de Jesus, Mateus inclui quatro mulheres em sua genealogia: Tamar, Raab, Rute e a mulher de Urias (Betsabéia) (tais nomes estão em itálico na tradução para deixar claro que precisam de consideração especial). É verdade que talvez seja um pouco exagerado tratar separadamente o problema causado pela presença dessas mulheres. É necessário dar a mesma atenção a todos os casos em que Mateus se afastou da fórmula estereotipada: “A gerou B”.
Mas está razoavelmente claro que as variações mateanas com referência aos homens (“Judá e seus irmãos; “Farés e Zara; “Jeconias e seus irmãos”) são uma forma de chamar a atenção para a seletividade praticada por Deus e, assim, para a obra da providência divina na lista de antepassados do Messias. É preciso verificar se as quatro mulheres veterotestamentárias desempenham o mesmo papel e perguntar qual é sua relação com Maria. De acordo com os padrões bíblicos, sua presença na genealogia é incomum. De fato, Tamar é mencionada em 1Cr 2.4, lista genealógica à qual Mateus deve alguma coisa, pelo menos indiretamente; mas, embora isso possa ter servido de catalisador, dificilmente explica a escolha mateana das outras três mulheres veterotestamentárias. O que as quatro mulheres tinham em comum que estimulou a escolha mateana? Há três explicações principais.
De acordo com a primeira hipótese, já defendida por Jerônimo (In Matt. 9; P L 26,22), as quatro mulheres veterotestamentárias eram consideradas pecadoras; sua inclusão, portanto, prenunciou para os leitores de Mateus o papel de Jesus como Salvador dos pecadores. Há quem veja no uso de Mateus uma apologética enigmática contra a alegação judaica de que Maria era adúltera e concebeu Jesus como fruto de relação pecaminosa. Para refutar isso, Mateus apontou irregularidades por parte das mulheres na genealogia reconhecida como do Messias. Entretanto, ao avaliar essa visão, deve-se mencionar que a Bíblia não declara todas essas mulheres pecadoras. Não está claro, por exemplo, que Rute pecou com Boaz. Além disso, embora no AT as outras mulheres fossem culpadas de lascívia em vários graus (Tamar agiu como sedutora e pretensa prostituta; Raab era prostituta; a mulher de Urias era adúltera), na devoção judaica do tempo de Jesus essas mulheres eram muito bem vistas. Tamar fazia parte dos santos prosélitos judeus (cananéia “convertida” ) e, por sua iniciativa, perpetuou a linhagem familiar do filho de Judá, que era seu falecido marido. Consta que ela fez isso por ter fé na promessa messiânica a respeito da linhagem de Judá e querer compartilhar de sua bênção. Raab, também classificada entre os prosélitos, era considerada heroína por ter ajudado a vitória de Israel em Jericó; e, nos escritos cristãos primitivos, era saudada como modelo de fé (Hb 11,31; 1 Clem 12,1). Nem o adultério de Betsabéia foi sempre condenado na literatura rabínica, pois, em última análise, ela deu à luz Salomão. Assim, é improvável que os leitores de Mateus considerassem tais mulheres pecadoras.
A segunda hipótese, popularizada por Lutero, é mais recomendável: as mulheres eram consideradas estrangeiras, e Mateus as incluiu para mostrar que, por seus antepassados, o Messias judaico tinha parentesco com os gentios. Segundo a Bíblia, Raab e (provavelmente) Tamar eram cananéias, enquanto Rute era moabita. Betsabéia não é identificada no AT como estrangeira, mas é como mulher de Urias (o heteu) que Mateus a identifica e, na verdade, essa designação peculiar constitui o argumento mais forte para a hipótese de que as quatro mulheres eram consideradas estrangeiras na genealogia do Messias. Há, porém, duas objeções contra essa hipótese, ou, pelo menos, contra ela como única explicação para a presença das mulheres. Primeiramente, as quatro mulheres veterotestamentárias constituem uma preparação para o papel de Maria e esta não era estrangeira. Além disso, não está claro se os judeus do século I consideravam as mulheres estrangeiras, apesar dos indícios veterotestamentários. Na literatura judaica pós-bíblica, Raab e Tamar não eram apresentadas como gentias, mas sim como convertidas ao judaísmo. Ora, se Mateus as introduziu na genealogia a fim de atrair o segmento cristão gentio de sua comunidade e mostrar que a presença de não-judeus foi prenunciada na genealogia messiânica, como os gentios entenderiam a posição das mulheres entre os prosélitos? Os cristãos gentios não se tornaram prosélitos judeus a fim de aceitar Jesus. Ou devemos afirmar que em uma comunidade onde predominavam os judeu-cristãos, os cristãos gentios eram considerados prosélitos não do judaísmo, mas do cristianismo judaico?
A terceira hipótese, que hoje tem um número considerável de seguidores, encontra dois elementos comuns nas quatro mulheres veterotestamentárias, elementos esses que elas partilham com Maria: a) há algo extraordinário ou irregular em sua união com os parceiros, e, embora tal união tenha sido escandalosa para os estranhos, continuou a linhagem abençoada do Messias; b)as mulheres demonstraram iniciativa ou desempenharam um papel importante no plano de Deus e, assim, foram consideradas instrumentos da providência de Deus ou do Espírito Santo. Tamar tomou a iniciativa de provocar sua união um tanto escandalosa com Judá. O AT nada diz a respeito da união de Raab com Salmon, mas deve ter sido um tanto irregular, pois ela foi prostituta. E foi a iniciativa de Tamar que possibilitou a Israel entrar na terra prometida. A união da moabita Rute com Boaz tinha certa irregularidade, se não escândalo, e foi provocada por iniciativa de Rute; sem essa iniciativa, a linhagem davídica talvez não existisse. A mulher de Urias (Betsabéia) teve uma união adúltera com Davi; contudo, foi ela que interveio para que Salomão, o filho deles, fosse o sucessor de Davi. Na devoção bíblica judaica essas uniões e iniciativas extraordinárias eram consideradas obras do Espírito Santo. Essas mulheres eram consideradas exemplos de como Deus usa o inesperado para triunfar sobre obstáculos humanos e intervir a favor de seu planejado Messias. É a combinação da união escandalosa ou irregular com a intervenção divina por intermédio da mulher que melhor explica a escolha mateana na genealogia. Houve intervenção divina em diversos outros nascimentos relacionados (por exemplo, para superar a esterilidade de Sara, Rebeca e Raquel), mas Mateus não menciona as mulheres envolvidas, pois não houve nada de escandaloso em sua união. O segundo elemento é importante porque Mateus escolheu mulheres que prenunciaram o papel de Maria, a esposa de José. Aos olhos dos homens, sua gravidez era um escândalo, pois ela não convivia com o esposo (Mt 1.18); contudo, o menino foi realmente concebido do Espírito Santo de Deus, de modo que Deus interveio para realizar a herança messiânica.
Essa intervenção por intermédio de uma mulher foi ainda mais dramática que os casos veterotestamentários, nos quais Deus superou a irregularidade moral ou biológica dos pais humanos. Na concepção do Messias foi superada a ausência total de pai humano.
A terceira hipótese, portanto, parece se ajustar perfeitamente à visão mateana geral na narrativa da infância. Mas não devemos excluir um tema que se origina da segunda hipótese. Era do interesse de Mateus que as quatro mulheres veterotestamentárias fossem também gentias ou ligadas a gentios (a mulher de Urias), o que não prenunciava o papel de Maria, mas o do Messias que ia trazer ao plano divino de salvação os gentios, indivíduos que, embora não fossem judeus, eram como Jesus na descendência de Abraão. As hipóteses de que a presença das mulheres na genealogia relaciona-se com a teologia e o propósito de Mateus subentendem que a inclusão das mulheres ocorreu na etapa da redação mateana, não em um período pré-mateano.
Fonte:O Nascimento do Messias – Raymond E. Brown.
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