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Movimento Carismático.

A expressão “carismático” decorre do termo grego cháris, que significa “dádiva" ou “dom divino”, do qual também se forma a palavra latina charisma, pressupondo uma força ou qualidade divinamente extraordinária, porque ultrapassa as qualidades humanas normais, conferida a uma pessoa para o especial exercício de liderança ou vocação. Este sentido de iluminação pode outorgar excepcional poder de atração, legitimidade e domínio a determinadas pessoas, grupos ou movimentos, cujos dons ou poderes miraculosos são vistos como decorrentes do seu contato íntimo com o sagrado.
Mais especificamente no âmbito cristão, o movimento carismático desenvolveu-se a partir da idéia de que certas pessoas são especialmente iluminadas ou possuídas pelo poder divino do Espírito Santo para o desempenho de atividades que requerem o uso de dons extraordinários ou miraculosos. Pelo menos quatro fatores contribuíram para a formação e o desenvolvimento desta concepção no cristianismo nascente. Primeiro, o judaísmo, que preservava antigas tradições com forte apelo de carismatismo:
1) Juízes, profetas e reis eram vistos como especialmente possuídos pelo Espírito do Senhor para o desempenho de suas funções. Nos dias de Jesus, estas idéias estavam ainda muito presentes no apocalipsismo judaico que projetava em líderes taumaturgos capacidades de cura, de exorcismo e de controle sobre fenômenos da natureza.
2) As religiões de mistério oriundas do Egito, da Síria e da Pérsia, bastante difundidas e popularizadas no mundo greco-romano no surgimento da era cristã. Nestes cultos, com cerimônias secretas, acreditava-se que sacerdotes iluminados eram possuídos por forças divinas, podendo assim, em êxtase, mediar a cura de enfermidades físicas e estabelecer comunicação com o mundo espiritual. A comunidade cristã em parte se apropriou deste imaginário religioso, re-significando-o, porém, à luz do ensino apostólico.
3) A experiência com o evento de Pentecostes, em que o Espírito Santo, segundo o relato bíblico de Atos, fora enviado para revestir de poder e dons carismáticos a igreja cristã, o que foi inicialmente evidenciado com a capacidade sobrenatural de se falar em outras línguas, fenômeno denominado glossolalia. Com aquela igreja seguiram-se ainda outros sinais e prodígios, como profecias, cura e exorcismo.
4) De certo modo, o cristianismo também emprestou tal concepção da idéia grega do “homem divino”, ou do conceito romano de facilita s, que consistia na habilidade inata do herói para levar um projeto ao sucesso graças a sua ligação com o sagrado.
Em meados do século II, quando o cristianismo já ganhava contornos mais definidos de institucionalização, eclodiu o movimento montanista com um forte apelo de carismatismo. Montanus, que se tornou líder deste segmento, ao converter-se à fé cristã e receber o batismo, no ano 156, entrou em êxtase e começou a falar em línguas desconhecidas. Tal episódio foi classificado por alguns cristãos como manifestação do Espírito Santo semelhante ao que havia ocorrido no Pentecostes. A liderança institucional da igreja, porém, classificou aquela experiência como um ato estranho à fé cristã. Expulso da comunidade como herege, o novo profeta atraiu muitos seguidores ao anunciar que a revelação divina ocorre diretamente através de seus profetas, não podendo haver para isto qualquer mediação institucional. Além do que, Montanus se considerava o escolhido para anunciar o novo advento messiânico, passando a afirmar que o fim do mundo estava próximo e prestes a ser estabelecida, na Frigia - região onde morava -, a nova Jerusalém, para onde, inclusive, se dirigiam muitos dos seus fiéis.
No período medieval podem ser caracterizados como expressões de carismatismo cristão o que ocorrera com determinados monges, que, vivendo em lugares ermos, passaram a ser vistos por muitos cristãos como portadores de dons especiais, sendo por estes procurados para o recebimento de orações miraculosas, proteção contra o demônio e orientação espiritual. Também se destacou o movimento liderado por Francisco de Assis, cujo carisma expressou-se no forte apelo à imitação de Cristo representada pelo despojamento de qualquer tipo de possessão material.
No âmbito das igrejas protestantes, alguns elementos de carismatismo, com o perfil anteriormente descrito, podem ser identificados em movimentos pietistas que se desenvolveram a partir do século XVII. A comunidade dos Moravianos, por exemplo, que se organizou nas regiões da Alemanha, empreendeu grandes esforços para alcançar um avivamento a partir de uma espiritualidade fervorosa e propagação de sua fé pelo trabalho missionário. Também no movimento Quaker presente na Inglaterra e nas colônias inglesas da América do Norte, o carismatismo foi caracterizado por uma santidade expressa no grande rigor comportamental e na realização de cultos marcados pela possessão extática do Espírito Santo. Com suas raízes nestas formas de pietismo, surgiu também na Inglaterra do século XVIII o movimento de santidade liderado por Jonh Wesley, cuja pregação carismática atraiu inúmeros seguidores, desencadeando um grande trabalho de avivamento que se estendeu aos Estados Unidos da América entre os séculos XVIII e XIX, causando impacto em diferentes denominações que haviam se formado a partir da Reforma Protestante. Neste movimento surgiram ainda outros influentes líderes, como Jonathan Edwards, D.L. Moody e Charles Finney, que passaram a atrair multidões não só por sua extraordinária capacidade de oratória e personalidade fascinante, como também por propagarem idéias milenaristas (crença no estabelecimento de um paraíso na terra mediante uma intervenção divina), fato que deveria se concretizar imediatamente após aquele despertar religioso. Acreditava-se, inclusive, ser a civilização norte-americana o protótipo do reino messiânico que Jesus Cristo inauguraria com o seu retorno à Terra. Como povo escolhido, caberia então aos norte-americanos a tarefa de apressar tal advento mediante um intenso trabalho evangelístico e missionário.
Mas foi em 1901, emTopeka, Kansas, Estados Unidos, que nasceu o maior movimento carismático com filiação protestante. Charles Fox Parhan, evangelista metodista dos movimentos de santidade - fundador e dirigente da Escola Bíblica Betei -, passou a ensinar aos seus alunos ser possível tornar contemporâneos ou repetir os sinais carismáticos que haviam se dado no Pentecostes do primeiro século, tendo na glossolalia o seu ápice. Inicialmente, a semelhante experiência teria ocorrido com a jovem Agnes Ozman, aluna daquela escola, sendo depois o fenômeno também experimentado por outros estudantes. Influenciado pela experiência pentecostal de Topeka, em 1906, em Los Angeles - EUA, o pregador negro William J. Seymour, membro da igreja Holiness, passou a realizar cultos carismáticos em um salão alugado na Rua Azusa Street, 312, onde oficialmente fundou a primeira denominação pentecostal, chamada de Missão Evangélica da Fé Apostólica. A ênfase à obra do Espírito Santo evidenciada por êxtases se tornou em pouco tempo uma sensação local e, mais tarde, um fenômeno de alcance mundial. Os jornais locais passaram a divulgar amplamente os episódios miraculosos que ali se afirmava ocorrer, o que contribuiu para que muitos visitantes de vários lugares procurassem Los Angeles no intuito de conhecer e depois também propagar aqueles sinais carismáticos. Estas reuniões na Rua Azusa aconteceram diariamente por três anos, de onde surgiram inúmeros pregadores responsáveis em difundir o movimento em outras partes do mundo.
Já no ambiente do catolicismo contemporâneo, destaca-se o surgimento da Renovação Carismática Católica, em 1967, nos Estados Unidos. Em três cidades universitárias (Nossa Senhora, em South Bend; Duquesnes, em Pittsburg; e a universidade do Estado de Michigan), estudantes católicos,juntamente com professores de teologia, passaram a buscar ardentemente por meio de retiros espirituais uma renovação da fé. A eles também se juntaram evangélicos pentecostais e não demorou para que manifestações de glossolalia ocorressem, o que foi visto como sinal comprobatório de que o batismo com o Espírito Santo aos moldes do Pentecostes bíblico se repetia. Centenas de estudantes daquelas três cidades universitárias logo começaram a tomar parte como conversos à nova experiência nos grupos semanais de oração que se formaram. Mas ainda que a renovação americana tenha exercido considerável influência nos católicos em várias partes no mundo, tal despertamento na verdade eclodiu quase que simultaneamente nos diferentes lugares em que existia uma igreja cristã.
Mais especificamente no contexto brasileiro, podem ser identificadas três principais tipologias de movimento carismático cristão:
1) O “pentecostalismo clássico”, representado pela Congregação Cristã no Brasil, formada em 1910, e a Igreja Evangélica Assembléia de Deus, organizada em 1911, ambas originadas a partir de líderes que tiveram experiências com o movimento de Los Angeles e que, por isso mesmo, adotaram como principal ênfase a experiência de glossolalia como sinal do batismo com o Espírito Santo.
2) O pentecostalismo de “cura divina”, representado por igrejas que se formaram nas décadas de 1950 e 1960, como a do Evangelho Quadrangular, O Brasil Para Cristo e Deus é Amor, as quais popularizaram, através do carisma pessoal de seus fundadores, campanhas de cura divina nos programas de rádio e na realização de grandes eventos em lugares públicos.
3) O  Neo-pentecostalismo, surgido na década de 1970, representado por igrejas como Universal do Reino de Deus, Internacional da Graça de Deus, Sara a Nossa Terra e Renascer em Cristo. Caracterizam este modelo, o personalismo carismático de seus líderes fundadores, a batalha espiritual, a teologia da prosperidade e o uso da televisão como instrumento de popularização de sua mensagem.
Também como parte desta terceira tipologia, no início da década de 1970, sob a liderança de alguns padres jesuítas motivados pelas novas propostas do Concílio Vaticano II, desenvolveu-se no país a Renovação Carismática Católica como um desdobramento do modelo norte-americano, caracterizada por experiências semelhantes à dos evangélicos neopentecostais, e tendo, nos chamados grupos de oração, o seu principal espaço de manifestação. Atualmente, a Renovação possui um Conselho Nacional que coordena os diversos núcleos e secretarias espalhados nas diferentes dioceses de todo o país. Em termos de ecumenismo, destaca-se o fato das primeiras grandes comunidades norte-americanas terem nascido com um forte apelo à unidade, reunindo estudantes católicos e protestantes convencidos de que a manifestação de dons carismáticos comum a todos era um sinal da aproximação que Deus daí por diante desejava para todo o seu povo. Isto promoveu, inclusive, o nascimento de projetos conjuntos de evangelização, sobretudo nos meios universitários. Da Igreja Católica Ortodoxa também surgiram participantes que aderiram às práticas daquele movimento nascente. Por um tempo, judeus messiânicos (que aceitam a Jesus como Messias), em plena expansão nos Estados Unidos naquele mesmo período, também vivenciaram semelhante despertamento religioso, compartilhando com católicos e evangélicos em determinados eventos ecumênicos das mesmas experiências carismáticas. Entretanto, o fato daquela renovação vir a se organizar sob o auspício da Igreja Católica, logo gerou dificuldades aos não-católicos de serem aceitos por suas próprias denominações de origem. Mesmo assim, o sonho e a proposta de unidade nunca deixaram de ser um objetivo a ser alcançado, sendo por isso, continuamente renovados no âmbito de vários grupos da Renovação Carismática Católica e compartilhados por outros líderes religiosos em diferentes lugares no mundo. Exemplifica este esforço a ida anual a Jerusalém, desde o ano de 1984, de cristãos (católicos, ortodoxos, evangélicos, árabes cristãos e judeus messiânicos) procedentes de vários países e membros de diferentes denominações, com o propósito de celebrarem juntos ali a festa de Pentecostes.
Em síntese, podem ser identificadas como principais características e ênfases teológicas do movimento carismático cristão, no contexto brasileiro atual, as seguintes experiências ou manifestações atribuídas ao Espírito Santo: capacidade de se comunicar sobrenaturalmente com Deus em uma linguagem divina (glossolalia); cura miraculosa de enfermidades (geralmente pelo rito de unção com óleo e imposição de mãos); profecia e revelação (em geral uma curta mensagem proferida na primeira pessoa como se provinda do próprio Deus, e que tem como propósito encorajar, exortar ou prever coisas futuras); manifestações extáticas chamadas de arrebatamento (em que o crente pode ser projetado para um mundo espiritual fora da dimensão terrena), quedas na unção (em que o recebimento do Espírito Santo é seguido por um tempo de profundo repouso) ou ainda intensas e incontroladas sensações de riso, de choro ou de sons inarticulados; exorcismo ou libertação espiritual de forças demoníacas; o personalismo carismático de líderes que, vistos como portadores de uma iluminação divina, ostentam grande poder representativo e força de comando sobre os demais membros do grupo para o qual dirigem a sua mensagem.


Fonte:Wander de Lara Proença - Dicionário Brasileiro de Teologia - Fernando Bortolleto Filho(org.)

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