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JOÃO CALVINO E A PREDESTINAÇÃO

Pietro Nelli, um satirista italiano do século XVI, descreveu nestes versos a atitude popular em relação à doutrina da eleição:
O carregador, a serva e o escravo
dissecam o livre-arbítrio
e confundem a predestinação.
O desprezo por essa doutrina é um tema recorrente na história da igreja. No século XVII, John Wesley, que devia mais a João Calvino do que estava disposto a admitir, escreveu os seguintes versos de um hino em que o ensino calvinista é levado ao ridículo:
"Compeliste os Perdidos a morrer;
Retiraste-os de tua Face; A outros salvaste, exceto os que se afastaram;
Ou zombaram apenas com a Graça da Perdição."
Até quando, ciumento Deus, até quando
Os ímpios Vermes tua Palavra refutarão, Tua justiça mancharão, tua Misericórdia ofenderão,
Negarão tua Fidelidade e Amor.
Ainda permanecerá a Doutrina Infernal?
E solicitarás seu terrível Autor?
Não — deixa-a afundar a teu Comando
Na Fossa de onde veio.
Nosso propósito, nesta seção, é descrever brevemente o que Calvino ensinou sobre a predestinação e como isso funcionou em sua teologia. Em 1844, Alexander Schweizer escreveu um livro no qual ele chamou a predestinação de o Zentraldogmen na teologia de Calvino. Essa opinião foi repetida por inúmeros eruditos e tornou-se parte da caricatura usual do reformador de Genebra. Outros, entretanto, questionaram essa suposição. A palavra predestinação, em sua forma nominal, foi usada pela primeira vez por Calvino somente nas Institutas de 1539. Certamente, ele não decidiu organizar seu programa teológico inteiro em torno dessa idéia. Num exame mais aprofundado, fica-se impressionado com a falta de originalidade da doutrina da eleição apresentada por Calvino. Seu ensino acerca desse tópico é basicamente idêntico ao que já observamos em Lutero e Zuínglio, e o mesmo poderia ser dito de Bucer também. Como todos esses, Calvino freqüentemente recorria a seu pai favorito, Agostinho, e tinha afinidade com a tradição agostiniana radical da Idade Média, na qual estavam teólogos como Tomás de Aquino (em seus últimos escritos), Gregório de Rimini e Thomas Bradwardine. Calvino fez um movimento realmente original em seu estabelecimento da doutrina dentro de seu esquema teológico. A predestinação é usualmente, e muito logicamente, tratada no contexto da doutrina de Deus como uma aplicação especial da doutrina da providência. Por exemplo, esse é o lugar em que Tomás, Zuínglio e os teólogos reformados posteriores, como Beza e William Perkins a colocaram. Calvino também, nas primeiras edições das Institutas, colocou a providência e a predestinação uma após a outra. Na edição definitiva de 1559, porém, ele separou as duas, mantendo a providência sob a doutrina de Deus Pai no primeiro volume e colocando a predestinação sob o título geral da obra do Espírito Santo, quase no final do terceiro. Assim como a providência, em certo sentido, completa a doutrina do Deus Criador, da mesma forma a predestinação é o clímax da doutrina do Deus Redentor.
Calvino não começou com a predestinação, passando depois à expiação, à regeneração, à justificação e às outras doutrinas. A predestinação tornou-se uma questão no contexto da história da salvação. De fato, Calvino introduziu isso como um problema ocasionado pela pregação do evangelho. Por que, ele perguntou, quando o evangelho é proclamado, alguns atendem e outros não? Nessa diversidade, ele disse, a profundidade maravilhosa do julgamento de Deus torna-se conhecida. Para Calvino, a predestinação do princípio ao fim era um interesse pastoral. Para o cristão, o fato da eleição é uma reflexão expost facto sobre como, em meio à escuridão e morte do pecado, a graça de Deus invadiu. Não é um motivo para se gloriar na escolha de alguém, nem para se divertir com o jogo "eu estou dentro, você está fora". Na verdade, essa atitude tem sido por demais associada aos defensores da doutrina calvinista acerca da eleição. Isso levou à presunção e a um exclusivismo ofensivo, como no velho hino batista particular:
Somos os poucos eleitos do Senhor,
Que todos os outros sejam condenados;
Há espaço suficiente para você no inferno,
Não queremos o céu abarrotado!
Mais fiel à perspectiva de Calvino é o parecer de John Newton, ele próprio um grande calvinista:     
A estranha graça de Jesus,
Um infeliz salvou;
Eu cego estava, deu-me luz,
Perdido e me buscou.
Podemos resumir a doutrina da predestinação exposta por Calvino em três palavras: absoluta, particular e dupla.
A predestinação é absoluta, no sentido de que não está condicionada a nenhuma contingência finita, mas baseia-se somente na vontade imutável de Deus. Calvino rejeitava a noção escolástica de que a eleição dependia do conhecimento prévio de Deus acerca das realizações humanas (ante praevisa merita). "O conhecimento prévio de Deus não pode ser o motivo de nossa eleição, porque, quando Deus [olha para o futuro e] observa toda a humanidade, ele encontra a todos, do primeiro ao último, debaixo da mesma maldição. Assim, vemos quão tolamente os frívolos balbuciam quando atribuem ao simples e puro conhecimento prévio o que deve estar fundamentado na boa vontade de Deus".
Em segundo lugar, a predestinação é particular no sentido de que pertence a indivíduos, e não a grupos de pessoas. Obviamente, Calvino estava consciente de que Deus elegeu Israel como seu povo especial da aliança. Contudo, nem todo membro individual da nação estava eleito para a salvação, como Paulo ressaltou (Rm 9.1-16). A aliança da graça aplica-se a cada pessoa individualmente. Com respeito à expiação, isso significa que Cristo não morreu por todos; indiscriminadamente, mas apenas para os eleitos. Essa doutrina, que se tornou uma das marcas da ortodoxia calvinista, foi adotada por muitos batistas na Inglaterra do século XVII, em conseqüência do que eles foram chamados de batistas particulares, em oposição aos batistas gerais, que acreditavam no alcance ilimitado da obra expiatória de Cristo.
Finalmente, a predestinação é dupla; isto é, Deus, para o louvor de sua misericórdia, ordenou alguns indivíduos para a vida eterna, e, para o louvor de sua justiça, enviou outros para a condenação eterna. Calvino expressou tal fato claramente: "a eleição em si mesma não poderia permanecer, exceto se estabelecida contra a reprovação" (Inst., III, XIII, 31). Visto que todos estão justamente condenados em virtude de sua deserção de Deus, Deus permanece tanto livre quanto perfeitamente justo em sua decisão. Ele não está "sujeito a prestar contas", nem nós somos juízes idôneos, "que, de próprio senso, [sentença] pronunciemos acerca desta causa" (Inst., III, XXIII, 2). Ambos os fatos mostram-se verdadeiros: os réprobos são escolhidos para a condenação pelo decreto eterno de Deus e, mesmo assim, os ímpios trazem sobre si mesmos a justa destruição a que estão destinados. Se perguntado sobre a razão pela qual Deus escolheu este e rejeitou aquele, Calvino replicava que quem indagou estava procurando algo maior e mais elevado do que a vontade de Deus, o que não poderia ser encontrado.
Calvino não ensinou essa doutrina porque era um "déspota severo" ou um homem mesquinho, mas porque, de modo certo ou errado, acreditava que ela se encontrava claramente nas Escrituras. Ele advertiu contra exibir a mensagem do "horrível decreto" perante novatos na fé, e não desejava dizer sobre a predestinação nada mais do que podia ser extraído da Bíblia: "... que [as cousas] que o Senhor deixou recônditas em secreto não perscrutemos, [as] que pôs a descoberto não negligenciemos, para que não sejamos condenados ou de excessiva curiosidade, de uma parte, ou de ingratidão, de outra" (Inst., III, XXII, 4). Os calvinistas posteriores, muitas vezes esquecendo essas palavras, tendiam a enredar-se em debates sem fim sobre a ordem precisa dos decretos de Deus, os indícios da eleição na atividade de uma pessoa no mundo e assim por diante. A doutrina de Calvino permaneceu cristocêntrica em seu foco: "... no próprio Cabeça da Igreja está o mais límpido espelho de eleição graciosa" (Inst., III, XXII, 1). Ele também não permitiu que a doutrina da predestinação fosse usada como desculpa para não se proclamar o evangelho a todos: visto que apenas Deus sabe quem elegeu e quem não elegeu para a salvação, nós pregamos o evangelho indiscriminadamente, confiando ao Espírito Santo seu uso como meio externo para o chamado efetivo daqueles mesmos que foram escolhidos em Cristo antes da fundação do mundo. Ao longo da história da igreja, alguns dos evangelistas e missionários mais eficazes foram firmes defensores de uma doutrina suprema da predestinação. Por exemplo, durante o Grande Despertamento do século XVII, George Whitefield, calvinista, ganhou muito mais pessoas para Cristo do que John Wesley, seu amigo arminiano. A predestinação, conforme Calvino a entendia, não é nem uma torre de igreja de onde se vê a paisagem humana, nem um travesseiro para dormir. Antes, é uma fortaleza em momentos de tentação e provação, e uma confissão de louvor à graça de Deus e à sua glória. 
Fonte: Timothy George – Teologia dos Reformadores.

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