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MÁRCION E SEU MOVIMENTO DE REFORMA



Seu caráter e propósito.
Márcion era nativo do Ponto (Sinope) e foi expulso de casa, aparentemente, por motivo de adultério, tendo ido para Roma cerca de 139 d.C. É-nos apresentado como homem de zelo profundo e de grande habilidade, que labutava no espírito de um reformador. A princípio procurou sujeitar a Igreja à sua maneira de pensar, mas não conseguindo êxito em sua obra reformista, sentiu-se constrangido a organizar seus seguidores numa igreja separada, bus­cando aceitação universal para seus pontos de vista através de ativa propaganda. Com frequência tem sido classificado como gnóstico, contudo a precisão dessa classificação é atualmente posta em dúvida. Loofs diz que a declaração de Hahn, "Márcion perperam gnosticus vocatur,  vai ao âmago da questão, porquanto ele tinha um propósito soteriológico, e não cosmológico; a fé, não o conhecimento, ocupava lugar de destaque em seu sistema; ele não desenvolveu mitos orientais e nem problemas filosóficos gregos, além de excluir as interpretações alegóricas". Isso concorda em linhas gerais com a afirmativa de Harnack, o qual diz que não se deveria classificar Márcion junto com gnósticos como Basilides e Valentino, dando os seguintes motivos para sua opinião: (1) Não era guiado por interesses metafísicos ou apologéticos, e sim por interesses puramente soteriológicos, (2) desse modo, toda a sua ênfase recaía sobre o evangelho puro e sobre a fé (não sobre o conhecimento), (3) não empregava a filosofia — pelo menos como um princípio principal — em sua concepção do cristianismo, (4) não procurou fundar escolas de filósofos, mas apenas reformar, em consonância com o autêntico evangelho paulino, as igrejas cujo cristi­anismo ele cria ser legalista (judaizante), as quais, segundo pensava ele, negavam a graça livre. Fracassando nisso, formou uma igreja só sua". Seeberg também destaca Márcion para estudo em separado.
Seus ensinamentos principais.
Para Márcion, o grande problema era como relacionar entre si o Velho Testamento e o Novo. Descobriu a chave do problema na Epístola aos Gálatas, que fala da oposição dos judaizantes a Paulo, e baseou-se na suposição de que os demais apóstolos compartilharam disso. Ficou convencido de que o evangelho fora corrompido ao mesclar-se com a lei. Assim, atirou-se à tarefa de separar da lei o evangelho, criando sua teoria acerca de opostos ou antíteses. Aceitava o Velho Testamento como genuína revelação do Deus dos judeus, todavia afirmava que Ele não podia ser idêntico ao Deus do Novo Testamento. É o Criador do mundo, embora um Deus longe de ser perfeito. Ele governa com rigor e justiça, é cheio de ira e nada conhece da graça. Contudo, não faz oposição ao Deus do Novo Testamento como se fosse o princípio do mal, mas tão-somente como um Deus inferior.
O Deus do Novo Testamento, por outro lado, é bom e misericordioso. Era desconhecido até ao décimo-quinto ano de Tibério, quando Se revelou em Cristo, o qual é frequentemente mencionado como o próprio Deus bom. Cristo não deve ser identificado com o Messias do Velho Testamento, posto que não corresponde ao delineamento profético acerca do Redentor vindouro. Ele veio como manifestação do Deus bom, não Se maculando com um corpo real, pois nada queria tomar dentre o reino do Demiurgo, mas meramente assumiu um corpo aparente, a fim de fazer-se inteligível. Revogou a lei e todas as obras do Demiurgo, motivo por que ocasionou Sua execução na cruz pelos príncipes deste mundo. Mas, visto ser irreal o Seu corpo, a crucificação em nada prejudicou ao Cristo. Ele proclamou o evangelho de amor e libertação da lei do Deus do Velho Testamento, abrindo assim um caminho de salvação para todos os que crêem, e até dos ímpios do outro mundo. Ficou subentendido, entretanto, que a maioria da humanidade pereceria, estando consignada ao fogo do Demiurgo, o Deus bom não os pune; simplesmente não os aceita. Esse é o Seu julgamento contra os ímpios. Visto que Márcion acreditatava que Paulo foi o único dos apóstolos que realmente entendeu o evangelho de Jesus Cristo, ele limitava o cânon do Novo Testamento ao Evangelho de Lucas e a dez epístolas do grande apóstolo dos gentios.
Fonte:Louis Berkhof – História das Doutrinas Cristã.

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