A questão apresentada frequentemente é se Jesus trouxe uma nova doutrina a respeito de Deus. Ele pregou um Deus diferente do Deus do Antigo Testamento? Sendo assim, então, ele também trouxe uma nova religião, pois é impensável ter um sem o outro. Muita confusão de pensamento nesse ponto é por causa da falta de distinção apropriada. Jesus era o revelador verdadeiro e, uma vez que toda revelação do ponto de vista das Escrituras, em última análise, tem Deus por seu objeto, era inevitável que Jesus tivesse feito algumas contribuições à doutrina concernente a Deus. Tomada dessa maneira, a afirmação da novidade de sua “teologia” é passiva de intenso debate.
Infelizmente, a ideia, quando nos deparamos com ela, apresenta um aspecto bem diferente em muitos casos. A novidade do ensinamento atribuído a ela nesse campo não é uma novidade de expansão ou de conteúdo adicional esclarecedor, mas uma novidade de rejeição e correção do que havia prevalecido antes. O Antigo Testamento, dizem, continha ideias bem defeituosas sobre a natureza de Deus. Especialmente as noções encontradas lá quanto à natureza ética de Deus ainda estão em conflito com a crença no poder absoluto de Yahweh, seus caprichos autocráticos ou, ainda mais, com até mesmo os aspectos exteriores das representações físicas de sua natureza. Está claro que tal renovação da doutrina de Deus não pode ser creditada a Jesus por ninguém que creia na realidade e consistência da revelação.
Contudo, também, está claro que essa opinião não foi formada pela interrogação ao próprio Jesus sobre a doutrina de Deus no Antigo Testamento. Essa opinião é o resultado de um estudo comparativo da doutrina do Antigo Testamento e o ensinamento de Jesus. Ela segue um procedimento que pode, eventualmente, conduzir à correção da visão do próprio Jesus sobre o assunto. Embora tal método não possa ser proibido para a ciência das religiões comparadas, esse não é o método da teologia bíblica. O que nos diz respeito aqui é como o ensino das Escrituras sobre a natureza divina aparentava para Jesus.
Nós devemos nos esforçar para olhar para esse assunto, e para outros assuntos, a partir da perspectiva de sua mente. Também não podemos considerar cada declaração de Jesus que envolva a crítica de ideias sobre Deus em voga como equivalente a um criticismo da doutrina do Antigo Testamento sobre a natureza de Yahweh. O Antigo Testamento e o Judaísmo não devem ser identificados um com o outro. Quanto ao último, nosso Senhor não raramente teve que fazer repreensões a ele. Porém, quanto ao primeiro, ainda está para ser provado que ele tenha feito o mesmo.
Há provas suficientes de que ele fez exatamente o contrário. Isso é deduzido pela ausência de qualquer instância de crítica nesse aspecto. Isso é deduzido ainda de sua crença na origem divina do Antigo Testamento, pois se as Escrituras procedem de Deus, e, contudo, contêm uma visão inadequada de Deus, é o próprio Deus então que se representou nelas de maneira inadequada. As evidências estão no silêncio ou apresentadas de maneira indireta, mas existem declarações positivas também. Quando questionado sobre o mandamento supremo na Lei, resumindo seu sentido de Deuteronômio 6.4,5, Jesus cita não somente esse sumário da religião perfeita, mas ele o prefacia, como é feito em Deuteronômio com a descrição de Deus: “Ouvi, ó Israel: Yahweh nosso Deus é o único Yahweh” (ou, de acordo com outra tradução do hebraico: “Yahweh é nosso Deus, Yahweh é Um”). A ligação do pensamento aqui implica que a ideia de Yahweh enunciada é adequada para basear a religião ideal expressa no mandamento [Mt 22.37,38; Mc 12.29,30; Lc 10.27].
Ao argumentar com os saduceus, Jesus reconhece o Deus de Abraão, Isaque e Jacó como seu Deus [Lc 20.37]. O argumento não é cronológico, como dependendo do fato de que, ainda no tempo de Moisés, Deus chamava a si mesmo de o Deus desses patriarcas, o que mais tarde implicaria que, naquele ponto na História, os patriarcas ainda estavam vivos, pelo menos quanto às suas almas. Entendido dessa maneira, o argumento não poria um fim na questão no debate entre Jesus e os saduceus, provando somente que até ao tempo de Moisés, considerava-se que os patriarcas ainda possuíam imortalidade da alma. O argumento de Jesus se baseia no significado seminal da frase “o Deus de”. Essa declaração de Yahweh com referência a uma pessoa estabelece um laço de comunhão íntima tal que se torna impossível para ele, o que lhe seria desonroso, entregar tal pessoa à morte, mesmo que de longe o corpo esteja relacionado. Desse voto de Yahweh, mais uma vez, segue-se a ressurreição de todos aqueles para os quais Deus chama a si mesmo de o Deus deles. Jesus mesmo explica esse significado no versículo 38: “Pois ele não é um Deus de mortos, mas de vivos, pois todos vivem para ele”. Deus é constituído de tal maneira em sua natureza que aqueles que estão religiosamente ligados a ele podem esperar com confiança a vida eterna e a ressurreição no último dia.
Tem sido afirmado que Jesus, ao identificar desse modo sua ideia de Deus com aquela do Antigo Testamento, apoderou-se ingenuamente daquilo no Antigo Testamento que era compatível com ele, ignorando todo o restante como não sendo de importância particular. Dizer que ele teria feito isso inconscientemente não pode ser provado nem desmentido, é claro, já que isso tem a ver com um processo subconsciente. Entretanto, dizer que ele teria mantido tal opinião discriminatória com clara consciência do que estava envolvido é inacreditável por causa de sua aceitação enfática do Antigo Testamento inteiro como sendo a Palavra de Deus. Jesus não podia ter mantido sua reverência óbvia para com as Escrituras se ele tivesse sentido a necessidade de rejeitar uma parte ampla delas e isso num tópico tão central como a natureza de Deus.
Fonte:Teologia Bíblica Antigo e Novo Testamento - Geerhardus Vos.
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