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Filipe Melanchthon e sua Teologia!

Filipe Melanchthon (1497-1560) não foi apenas o mais notável discípulo ecolaborador de Lutero, mas também criou um tipo independente de teologia da Reforma. Além disso, lançou as bases para a educação superior na Igreja Protestante, não apenas no campo da teologia, mas tam­bém nas disciplinas filosóficas. Não é sem motivo que foi denominado «o educador da Alemanha» (Praeceptor Germaniae).
Melanchthon tinha apenas 21 anos de idade quando se tornou pro­fessor de grego na Universidade de Witenberga. Influenciado por Lutero, deu seu total apoio à Reforma e dedicou-se cada vez mais à teologia, mas sem desistir de seus estudos humanísticos. Tornou-se o colaborador mais íntimo de Lutero e, após a morte deste, foi o mais destacado líder da Reforma na Alemanha, embora gradualmente se tornasse personalidade con­trovertida em círculos luteranos.
Entre os escritos de Melanchthon, seu livro Loci communes é teo­logicamente o mais interessante. É o primeiro livro da Reforma no cam­po da dogmática. Foi publicado pela primeira vez em 1521, e Lutero o elogiou muito. Posteriormente Melantchthon reelaborou o conteúdo do li­vro, e edições subsequentes apareceram èm 1535 e 1543. A terceira edi­ção era muito mais pormenorizada que as outras. Esta última edição tam­bém revelou o quanto o autor modificara sua opinião em vários pontos desde 1521.
Melanchthon foi o homem que efetivamente escreveu a Confissão de Augsburgo. Também escreveu a «Apologia» desta confissão, bem como o Tratado sobre o Poder e o Primado do Papa, que foi adicionado aos Arti­gos de Esmalcalde. Vários comentários bíblicos também estão incluídos em sua bibliografia teológica, bem como uma exposição do Credo Niceno. Seu Examen ordinandorum foi de grande ajuda às jovens igrejas es­tatais na Alemanha.
Como escritor, Melanchthon não se restringiu ao campo da teologia. Escreveu compêndios para serem usados em várias disciplinas filosóficas, e também um comentário sobre Aristóteles. Entre outras coisas, publicou Philosophia moralis (ética filosófica), De anima (psicologia), além de uma exposição sobre dialética. Em virtude destes escritos, a contribuição de Melanchthon foi de significado decisivo para todo o campo da educação universitária em círculos protestantes por muito tempo.
Qual foi a posição de Melanchthon relativamente a Lutero?Esta ques­tão já foi debatida por teólogos daquela época, e ainda está sendo discu­tida na moderna pesquisa. Alguns consideraram Melanchthon o fiel defen­sor e intérprete consciencioso dos ensinamentos de Lutero. Na opinião de outros, ele teria deturpado a teologia original da Reforma, opondo-se fla­grantemente às verdadeiras intenções de Lutero.
Nenhuma destas interpretações é correta. Melanchthon não seguiu Lutero em todos os pontos. Modificou alguns aspectos da posição de Lu­tero que ele próprio defendera anteriormente. Estas modificações podem ser observadas nas várias edições dos seus Loci.Por natureza, Melanchthon não era simples repetidor, mas pessoa dotada de elevado grau de indivi­dualismo. Em seu apoio à Reforma foi diligentemente ativo. Ao mesmo tempo, era irênico, procurava a harmonia — contrastando com Lutero, que apreciava um bom conflito.
Melanchthon divergiu de Lutero, não devido a qualquer falta de com­preensão da profunda mensagem da Reforma; mas o fez como resultado de sua própria deliberada escolha. Julgava que certos problemas teológi­cos deviam ser apresentados de modo diferente. A seguir trataremos des­tas diferenças.
As realizações de Melanchthon tiveram cunho bem diverso das de Lutero. Pois, enquanto Lutero apareceu no palco da história com seguran­ça profética, dando forma livre a suas idéias, Melanchthon preferia a apre­sentação sistemática e formulações cuidadosamente trabalhadas. Era acima de tudo um professor, enquanto que Lutero era profeta. Esta falta de se­melhança foi de valor extraordinário para a causa da Reforma. Sem a con­tribuição de Melanchthon, a Reforma não teria tido a solidez e amplitude que alcançou. Foi ele quem lançou as bases para a combinação de teolo­gia com educação científica que caracterizou as igrejas estatais luteranas e universidades em tempos idos. Tinha grande respeito pela educação hu­manista, julgando-a indispensável à teologia. Sem tal apoio erudito, dou­trinas falsas facilmente poderiam se infiltrar, e a teologia poderia degene­rar em especulação ignorante e confusa, fazendo todo o cristianismo cair no descrédito.
O esboço seguinte da teologia de Melanchthon terá de limitar-se aos pontos em que ia além de Lutero ou divergia dele.
Os Loci de 1521 concentravam sua atenção em lei e evangelho, pe­cado e graça, de acordo com o programa traçado no Prefácio: A teologia não deve ocupar-se com questões metafísicas referentes à essência divina ou às naturezas de Cristo, mas com aquilo que trata da salvação da alma. Apenas desta maneira podemos alcançar conhecimento verdadeiro de Cris­to. Que adianta se um doutor sabe tudo sobre a aparência das ervas, mas nada sobre seus poderes curativos? Ter conhecimento cristão significa sa­ber o que a lei exige e como a consciência contrita pode ser restaurada.
Com respeito ao livre arbítrio,Melanchthon de início concordava com as idéias de Lutero manifestadas no De servo arbítrio.As considerações antropológicas eram típicas de Melanchthon. No que concerne a ações pu­ramente externas, o homem tem certa liberdade; a vontade pode dirigir nossa capacidade de movimentação. Porém a lei divina não se ocupa com estas ações externas mas com os impulsos do coração. Melanchthon de­nominava estes de «sentimentos», e com respeito a eles, dizia, o homem não é livre. Não é possível ao homem influenciar seu próprio coração. Um sentimento forte como o ódio, por exemplo, só pode ser alterado por outro sentimento mais forte. É por isso que o homem não possui liberdade al­guma na esfera espiritual. «O cristão sabe que nada existe que mais fuja a seu controle do que seu próprio coração.» Isto também explica porque o homem é incapaz de contribuir para sua própria justificação. O coração ou os sentimentos só podem ser realmente alterados depois que o Espírito Santo, pela fé, passou a habitar no homem, de modo que tem início o con­flito entre carne e espírito dentro dele.
Melanchthon também se associou a outros aspectos do «determinis­mo» de Lutero nos Locide 1521. Justificou isto não apenas psicologica­mente mas também com o conceito de onipotência de Deus: visto todas as coisas acontecerem de acordo com a predestinação divina, a vontade não é livre. Foi neste ponto, contudo, que Melanchthon veio a divergir de Lutero mais enfaticamente. Por volta de 1530, começou a apresentar argu­mentos que, em sua estimativa, tornavam uma doutrina da predestinação, como a recém mencionada, impossível.
Modificações com respeito à linha de pensamento psicológica foram feitas nas edições posteriores dos Loci. É verdade que apenas o Espírito de Deus é capaz de deter os efeitos corruptores do pecado original e de destruir os poderes dos sentimentos, mas na realidade (dizia o Melanchthon amadurecido) isto acontece com a cooperação da vontade. Pois quando o Espírito age sobre o homem através da Palavra, ele pode aceitar ou re­jeitar o chamado (C. R. 21, 1078). A conversão resulta da cooperação de três fatores: A Palavra, o Espírito Santo, e a vontade humana. Num su­plemento que apareceu pela primeira vez nos Loci de 1548, a primeira edição publicada após a morte de Lutero, esta idéia foi desenvolvida mais ainda. O homem não pode desculpar sua inatividade face ao chamado da graça dizendo que nada há que possa fazer; pois com o apoio da Palavra pode ao menos rogar a ajuda de Deus. Neste contexto, o livre arbítrio foi defi­nido como «a capacidade de dirigir-se à graça» (facultas applicandi se ad gratiam.C. R. 21, 659). Aqui Melanchthon não pretende exprimir um ponto de vista distintamente semipelagiano. Estava convencido que a ação da Palavra e do Espírito vinha em primeiro lugar, e que a vontade é capaz de agir apenas quando é chamada por intermédio da Palavra e influenciada pelo Espírito. Mas Melanchthon também salientou que o homem não deve ficar ocioso esperando por súbita inspiração do Espírito. E a isto adicio­nava outro argumento.
Melanchthon. passou a rejeitar a própria idéia da predestinação na forma em que a apresentara anteriormente. Deus elege o homem para a salvação e realiza sua obra de salvação de acordo com seu decreto eterno. Mas isto não pode significar que Deus também tinha predeterminado a destruição dos maus. Pois em tal caso Deus apareceria como sendo a causa do mal, o que não se coaduna com a natureza de Deus. Portanto, a razão porque um é escolhido e outro é condenado, deve residir no homem. A promessa é universal. Se Saul é rejeitado mas Davi é aceito, a diferença deve fundamentar-se em sua própria conduta. A eleição divina é «eleição secreta e eterna», sobre a qual só podemos julgar a posteriori. Os que em fé aceitam a misericórdia de Deus por causa de Cristo são eleitos. O chamado é universal, e se um homem é rejeitado, a explicação se encontra no fato que rejeitou o chamado. Dificilmente se poderia dizer que Me­lanchthon era sinergista nesta questão, mas procurava enfatizar os aspectos humanos e volitivos da experiência da conversão. Também divergiu do conceito de «dupla» predestinação de Lutero e da idéia da onipotência de Deus como base para a predestinação.
Com respeito à doutrina da justificação, foi Melanchthon quem formu­lou mais precisamente a posição da Reforma, mas ao fazê-lo alterou até certo ponto as idéias básicas que encontramos em Lutero. Isto aconteceu especialmente nas obras posteriores de Melanchthon sobre o assunto. Na Apologia (1530) Melanchthon ainda era capaz de relacionar a fé a um justum fieri real, uma justificação do homem inteiro, ao mesmo tempo que ele é declarado justo perante o tribunal de Deus (justum reputari). Mais tarde, fixou o uso linguístico de tal maneira que a justificação no sentido paulino passou a ter significado apenas de declarar justo. Nesta conexão falamos de justificação «forense» (de «forum», praça do mercado, lugar onde ficava a corte de justiça), visto ser considerada uma absolvição perante o tribunal divino. Torna-se difícil relacionar este declarar justo com a renovação con­creta. Melanchthon introduziu aí um problema que Lutero não discutira. De acordo com este, o homem participa do Espírito desde o momento em que se apropria dos méritos de Cristo pela fé. A fé significa participação em Cristo, a regeneração resulta, simultaneamente, da imputação. Pois es­ta não é apenas um ato legalista de julgamento, mas também a Palavra vivi­ficante de Deus, que soergue o homem e lhe dá o novo nascimento. De acordo com Melanchthon, no entanto, a imputação e a regeneração não são a mesma coisa: aquela é a outorga do cumprimento da lei por Cristo, que ocorre perante o tribunal celeste, enquanto que a infusão do Espírito é algo que segue sem estar organicamente relacionado com ela. Numa ocasião — na disputa de Melanchthon com Osiandro (a respeito da qual se falará mais tarde) — este ponto foi de vital importância. Parece então que a exposição de Melanchthon era verdadeira defesa da posição essencial da Reforma, ao mesmo tempo que perdera algo da riqueza do ponto de vista de Lutero.
Melanchthon descrevia o arrependimento como mortificatio, efetuada pela lei, e vivificatio efetuada pelo evangelho. Aquela era considerada fe­nômeno psicológico mais ou menos limitado. Acrescentando-se a isto sua ênfase na atividade da vontade na conversão, o fato de separar justificação e regeneração, seu conceito de arrependimento como contendo duas par­tes, etc. — então se pode falar da tendência de Melanchthon de antecipar a ordo salutis posterior, com sua divisão da vida cristã em diferentes fases. Melanchthon, todavia, não ensinou de fato esta espécie de ordo salutis; seu conceito era uma formulação clara e explícita da doutrina evangélica do arrependimento, como fora desenvolvida durante a Reforma.
A lei ocupa posição um tanto diferente na teologia de Melanchthon daquela que tem na de Lutero. Aquele considerava a lei como ordem divi­na, imutável, à qual compete ao homem obedecer. Aos dois usos da lei ensinados por Lutero, usus civilise usus theologicus,Melanchthon adicio­nou um terceiro, usus tertius in renatis. Com isto queria dizer que mesmo os regenerados estão subordinados à lei, e na pregação da lei encontram uma norma e regra de conduta para suas vidas. Necessitam da lei para apoio e direção, pois estão afligidos por fraquezas e caem com facilidade. (Posteriormente o pietismo interpretou este ensinamento original do ter­ceiro uso da lei como referindo-se a uma lei especial e mais rigorosa que só podia ser cumprida pelos fiéis — o equivalente, portanto, da doutrina católica romana dos conselhos evangélicos.)
O forte acento pedagógico na teologia de Melanchthon já foi mencio­nado. Juntamente com ele havia ênfase na doutrina pura. Esta ênfase tor­nou-se muito proeminente na antiga teologia evangélica, e a conexão entre ela e o conceito luterano de fé é óbvia. A atitude cada vez mais dogmá­tica de Melanchthon revelou-se entre outras coisas em sua doutrina da igreja. Ressaltou energicamente a igreja visível (ecclesia visibilis), que é composta daqueles que confessam a doutrina pura e participam dos sacra­mentos. A marca distintiva da igreja verdadeira, portanto, não é simples­mente a pregação da Palavra, mas também a doutrina pura. «A igreja visível é a assembléia daqueles que abraçam o evangelho de Cristo e usam os sacramentos corretamente. Deus opera nela mediante o ministério do evangelho e regenera muitos para a vida eterna. Apesar disso, muitos há nessa assembléia que não são regenerados, mas há concordância sobre a doutrina pura.» (C. R., 21, 826). O valor conferido ao ofício de ensinar também era característico da eclesiologia de Melanchthon. Dividia a igreja em membros que ensinam e os que escutam. Obediência ao ofício magisterial era enfaticamente salientada. Como resultado disso, o conceito lute­rano de sacerdócio perdeu algo de seu significado.
A formulação de Melanchthon da relação entre igreja e autoridade se­cular também serviu de protótipo para gerações futuras. Ensinava que o estado assumira tanto as funções de poder e administração externa da igreja, como também a responsabilidade de sustentar e proteger a igreja.
O príncipe devia ser também o custos utriusque tabulae — isto é, o pro­tetor também da fé e do verdadeiro culto a Deus. Julgava-se estar ele su­bordinado ao ofício magisterial com respeito à administração da Palavra e da doutrina verdadeira na congregação.
Frequentemente se menciona o tradicionalismode Melanchthon. Re­fere-se isto ao fato que os credos ecumênicos e o consenso do cristianismo antigo como um todo recebiam ênfase cada vez maior em sua teologia. Julgava não poder ensinar aquilo para o que não encontrava apoio na época da igreja antiga. Melanchthon, porém, não acreditava estar à tradição no mesmo nível da Escritura. Ao invés disso, considerava a tradição apenas o meio pelo qual a revelação original chegou até nós, e que sem ela não poderíamos interpretar a Escritura corretamente. Portanto o maior valor foi atribuído à mais antiga tradição. A Escritura e a tradição joeirada cuidado­samente formam uma unidade. Um bom exemplo da forte dependência de Melanchthon da tradição dos pais eclesiásticos, devido a seus princípios, pode ser visto em seu conceito da ceia do Senhor. Criticava o uso feito por Lutero da doutrina da ubiqüidade nesta conexão. Não podia descobrir apoio para essa interpretação da ceia do Senhor na antiga tradição. Atinha-se à doutrina da presença real, mas insistia ser necessário entender-se a mesma de outro modo. O corpo de Cristo encontra-se no céu, mas de­vido a sua onipotência divina pode estar presente na ceia do Senhor (multivotipresens). Seu corpo não está incluído no pão, mas está fisicamente presente no uso do sacramento (in uso Eucharistiae)com o pão mas não no pão.
As profundas tendências humanistas de Melanchthon eram ainda mais significativas que seu «tradicionalismo». Pressupostos filosóficos desempe­nhavam papel de destaque em sua teologia, não apenas nas modificações a que deram origem, mas acima de tudo no cunho específico que impri­mira a sua teologia em geral. O método de Melanchthon foi nitidamente influenciado pela filosofia. Em edições posteriores dos Loci, Melanchthon sustentou que o teólogo, como o cientista, deve empregar método e ordem e esforçar-se para encontrar uma disposição clara do material com que trabalha. Realmente, provas racionais não podem ser dadas na teologia, pois esta não se baseia em princípios racionais e sim na Escritura como a pa­lavra de Deus. Mas a própria Escritura, bem como as confissões de fé, manifestam ordem interna que se pode observar e sobre a qual se pode edificar um sistema teológico. Os próprios Loci de Melanchthon tinham como objetivo seguir a ordem da história da salvação como apresentada na Escritura e nos credos. Nisto e em muitos outros aspectos, Melanchthon antecipou desenvolvimentos subsequentes na teologia luterana. Seu cha­mado «método dos Loci» foi por muito tempo usado na dogmática. Seu estilo foi, modificado com o correr do tempo, e uma das alterações signi­ficativas foi, sem dúvida, a introdução de metodologia filosófica em grau cada vez maior.
Por muito tempo na pesquisa teológica, tem sido lugar comum procu­rar a origem dos desenvolvimentos do luteranismo em Melanchthon e em suas divergências da teologia de Lutero. Isto é parcialmente verdadeiro, mas não podemos ignorar o fato que Melanchthon esteve, em vários pon­tos, muito mais próximo de Lutero do que os teólogos que foram conside­rados os sucessores de Lutero. Deve-se lembrar, também, que a ortodoxia luterana frequente e deliberadamente rejeitou Melanchthon e se opôs a ele, especialmente naqueles pontos em que se desviara de Lutero. Esta opo­sição expressou-se mesmo enquanto Melanchthon ainda vivia, notadamente na controvérsia surgida entre seus seguidores, os «filipistas», e os assim chamados «gnésio-luteranos».

Fonte:História da Teologia - Bengt Hägglund

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