Para Qohélet, Deus “não é investigável”; fala, porém, muitas vezes de Deus. Podemos perguntar, portanto, com razão: Que conceito tem Qohélet de Deus e o que pensa das relações do homem com Deus? Os autores partem do pressuposto verdadeiro de que Qohélet crê em Deus. O problema surge quando se quer determinar o que entende Qohélet por Deus. Segundo alguns, não podemos saber nada disso, pois “no Ecl Deus não só é desconhecido do homem pela revelação, mas também não se pode conhecer pela razão”. Todavia, fala, ainda que negativamente, de Deus. Assim têm razão os que tentam determinar, à medida do possível, qual é a idéia que Qohélet tem de Deus. O leque de opiniões é amplíssimo. Mencione-se, em primeiro lugar, os que afirmam que o Deus de Qohélet é impessoalou pelo menos que assim parece ser, reduzido à frialdade “de um Princípio Metafísico”. Depois vêm aqueles para os quais o Deus de Qohélet é um Deus pessoal, com tantos matizes quantos são os autores que trataram do tema. Desaparecem assim os possíveis equívocos acerca do ser pessoal de Deus: primeiro tenuemente, depois mais abertamente. Não podemos passar por alto a corrente de opinião que atribui a esse Deus pessoal certos traços e atributos que não nos parecem conformes plenamente com o Deus venerado pelo povo de Israel, tal como aparece, pelo menos, em Profetas e Salmos. Esse Deus de Qohélet foi chamado de “déspota distante e indiferente”, “o absoluto e arbitráriodono do destino”, “um longínquo e incompreensível déspota, um ser arbitrário”. Coerentemente, essa corrente de intérpretes considera que não tem nada a ver o Deus de Qohélet com o Deus que se presume conhecer em Israel pela revelação, o Deus dos Patriarcas e Profetas, ou o Deus de Jó.
Porém existe outra corrente de interpretação de Qohélet, a mais costumeira por ser a tradicional, mas que se renova, que vê em Qohélet “um genuíno testemunho veterotestamentário”. O Deus de Qohélet não é estranho ao A. T., “mas o Deus vivo e concreto da fé israelita”; e, se compararmos Qohélet com Jó, F. Crüsemann nos dirá que “as posições teológicas do poeta de Jó e de Qohélet são tão semelhantes que se podem e se devem interpretar mutuamente”.
As diferenças existentes entre Qohélet e os outros autores do A. T., mesmo acerca do conceito de Deus, não são razões suficientes para deixar fora Qohélet do mundo da fé de Israel, mas antes prova da riqueza da Sagrada Escritura, que, com sua multiplicidade e variedade, contém a revelação do insondável mistério de Deus, cujas infinitas facetas jamais nosso pequeno entendimento poderá esgotar. Cabe, pois, a diversidade, o tenteio e balbucio quando se fala de Deus, mesmo na Sagrada Escritura.
As reflexões do sábio Qohélet certamente distam muito do espírito que alentava os Profetas de Israel. Mas é que sua função é outra, sem que isso o leve necessariamente a negar o espírito dos Profetas. Quem agora fala é o homem da experiência histórica descarnada, reduzido à sua esfera natural, de uma história feia e suja, dura e execrável, que tantas vezes provoca náuseas a Qohélet, daí seu tudo é vaidade, vazio, vento, caça de vento, absurdo, sem sentido, etc.
Todavia, Qohélet não lança a toalha. Há quem talvez diga que inconsequentemente. Pode ser; mas é que as inconsequências e as contradições são ingredientes da própria realidade. Qohélet não crê que estas contradições da realidade da vida humana, essas incongruências e incompatibilidades, por exemplo, entre a concepção de um Deus, em cujas mãos onipotentes estamos todos, e a acumulação das misérias humanas sem o horizonte esperançoso de que se fará justiça de uma ou de outra maneira (esta é a doutrina da retribuição), não crê, repito, que sejam argumento para pôr em dúvida, e muito menos negar, a existência de Deus. Aqui volta a manifestar-se a profunda fé religiosa de Qohélet. Nisso estava de acordo com o salmista, para quem negar a existência de Deus é coisa de néscios: “Diz o néscio para si: ‘Deus não existe” (SI 14,2). O fato de não sermos capazes de resolver as contradições na vida prova várias coisas: que a vida é mais complicada do que podemos imaginar, que nós os homens somos muito limitados em nossas possibilidades, e que nada sabemos acerca do domínio e governo de Deus sobre sua criação e, em especial, sobre o homem; mas jamais será argumento razoável para forçar-nos a negar a existência de Deus.
Fonte:José Vílchez Líndez - Eclesiastes ou Qohélet.
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