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UM BREVE PANORAMA DE ROMANOS - part 2

O plano de Deus (9-11)
Durante a primeira parte de sua carta Paulo não esqueceu, nem a mistura étnica da igreja romana, nem as tensões que sempre vinham à tona entre a minoria, composta de cristãos judeus, e a maioria, composta de gentios. Agora chegou a hora de ele encarar de frente o problema teológico que subjaz a questão. Como é que o povo judeu, como um todo, havia rejeitado o seu Messias? Como conciliar a incredulidade deles com a aliança e as promessas de Deus? O impressionante é que cada um destes três capítulos começa com uma emocionante declaração de amor de Paulo por Israel — sua angústia por causa da alienação deles (9.lss.), seu anseio por sua salvação (10.1) e o fato de ele mesmo continuar sendo judeu (11.1).
No capítulo 9 Paulo defende a fidelidade da aliança de Deus. Ele fundamenta sua defesa dizendo que as promessas de Deus não se destinavam a todos os descendentes de Jacó, mas sim a "um Israel dentro de Israel", um remanescente, uma vez que ele sempre agiu de conformidade com o seu "propósito conforme a eleição" (11). Isto se pode ver não apenas no fato de Deus haver escolhido Isaque ao invés de Ismael, e Jacó em vez de Esaú, mas também no fato de ele ter tido misericórdia de Moisés e, ao mesmo tempo, endurecido o coração de Faraó (14-18) — se bem que isso foi um castigo decorrente do endurecimento propositado de seu próprio coração. Se essa questão da eleição ainda nos traz problemas, é bom lembrarmos que o ser humano nunca deveria questionar a Deus (19-21), que a Deus cabe o direito de ser Deus em sua decisão de tornar conhecido seu poder e misericórdia (22-23) e que a própria Escritura profetizou o chamado, tanto dos gentios como dos judeus, para serem povo de Deus (24-29).
Desde o final do capítulo 9 e no decorrer do capítulo 10, porém, ficou evidente que a incredulidade de Israel não pode ser explicada simplesmente pelo propósito de Deus conforme a eleição. Pois Paulo passa a afirmar que Israel "tropeçou na pedra de tropeço", a saber, Cristo e sua cruz. Com isso ele está acusando Israel de recusar orgulhosamente submeter-se ao caminho de salvação proposto por Deus, bem como de um zelo religioso que não era baseado no conhecimento (9.30—10.4). Paulo passa a contrastar "a justiça que é pela lei" com "a justiça que é pela fé", e enfatiza, valendo-se com muita habilidade de Deuteronômio 30, o acesso imediato a Cristo que temos por meio da fé. Ninguém precisa sair por aí à procura de Cristo, uma vez que ele já veio, morreu e ressurgiu e está perto de qualquer um que invoque o seu nome (5-11). Além disso, neste particular não há qualquer diferença entre judeus e gentios, já que o mesmo Senhor é o Senhor de todos e abençoa ricamente todos aqueles que o invocam (12-13). Para isso, no entanto, é necessário evangelizar (14-15). Mas então, por que Israel não aceitou a boa nova? Não foi por não ter ouvido ou entendido. Mas então, por quê? É que Deus ficou o tempo todo de mãos estendidas para recebê-los, mas eles foram "desobedientes e obstinados" (16-21). Portanto, a incredulidade de Israel, que em Romanos 9 se atribui ao propósito de Deus conforme a eleição, em Romanos 10 é atribuída ao orgulho de Israel, bem como a sua ignorância e obstinação. A tensão entre a soberania divina e a responsabilidade humana constitui-se em uma antinomia que a mente finita não consegue compreender.
A partir do capítulo 11 Paulo volta-se para o futuro. Ele declara que o fracasso de Israel não é total (já que existe um remanescente fiel, 1-10) nem final (uma vez que Deus não rejeitou o seu povo e este há de se recobrar, v. 11). Se por meio da transgressão de Israel veio a salvação para os gentios, agora, através da salvação dos gentios, Israel será movido pelo ciúme (12). Na verdade, o ministério de evangelização de Paulo consiste em despertar ciúmes em seu próprio povo, a fim de salvar alguns deles (13-14). E então a "plenitude" de Israel haverá de trazer "riquezas muito maiores" para o mundo. Paulo prossegue apresentando a sua alegoria da oliveira, a partir da qual ensina duas lições. A primeira é uma advertência para que os gentios (o ramo de oliveira brava que foi enxertado na oliveira) não se tornem presunçosos ou arrogantes (17-22). E a segunda é uma promessa a Israel (os ramos naturais) de que, se eles não persistirem na incredulidade, serão novamente enxertados na oliveira (23-24). A visão de Paulo para o futuro, que ele chama de "mistério" ou "revelação", é que quando vier a plenitude dos gentios, também "todo o Israel será salvo" (25-27). E o que fundamenta essa certeza é o fato de que "os dons e o chamado de Deus são irrevogáveis" (29). Assim nós podemos aguardar com toda confiança que venha a "plenitude", tanto para os judeus como para os gentios (12, 25). Com efeito, Deus terá "misericórdia para com todos" (32), o que significa, não todo mundo sem exceção, mas sim judeus e gentios sem distinção. Não é de estranhar, portanto, que essa expectativa leve Paulo a prorromper numa doxologia em que ele exalta a Deus pela profundidade das suas riquezas e da sua sabedoria (33-36).
A vontade de Deus (12.1—15.13)
Chamando os cristãos de Roma de "irmãos" (uma vez que as antigas distinções étnicas já foram abolidas), agora Paulo lhes dirige um eloqüente apelo, baseado nas "misericórdias de Deus" que ele vem expondo. Depois convoca-os à consagração dos seus corpos e à renovação de suas mentes. Ele coloca diante deles uma dura alternativa, com a qual o povo de Deus se confronta em todo tempo e em todo lugar: ou eles se amoldam aos padrões deste mundo, ou se deixam transformar por mentes renovadas que saibam discernir a "boa, perfeita e agradável vontade de Deus". É uma escolha entre os padrões do mundo e a vontade de Deus.
Nos capítulos seguintes o autor deixa claro que a boa vontade de Deus tem implicações em nossos relacionamentos, que são radicalmente transformados pelo evangelho. Paulo aborda oito deles: a nossa relação com Deus, com nós mesmos, uns com os outros, com os inimigos, com o Estado, com a lei, com o dia do juízo final e com os "fracos". Além disso, nossa mente renovada, que agora busca a vontade de Deus (1-2), leva-nos a um novo padrão de avaliação; nosso conceito de nós mesmos e dos nossos dons trará a marca da moderação, do equilíbrio, não alimentando sobre a nossa pessoa uma opinião elevada demais, nem inferior ao que ela de fato é (3-8). Nossa relação uns com os outros será uma conseqüência natural do exercício dos ministérios mútuos que os nossos dons possibilitam. O amor que une os membros da família cristã há de incluir sinceridade, afeição, honra, paciência, hospitalidade, simpatia, harmonia e humildade (9-16).
A seguir vem o nosso relacionamento com os nossos inimigos ou com os malfeitores (17-21). Fazendo eco aos ensinos de Jesus, Paulo escreve que nós não devemos retaliar ou vingar-nos; já que punir o mal é prerrogativa de Deus, deixemos que ele o faça; entrementes, devemos procurar a paz, servir aos nossos inimigos e vencer o mal com o bem. É possível que a questão da nossa relação com as autoridades governamentais (13.1-7) tenha vindo à mente de Paulo por causa de sua referência à ira de Deus (12.19). Se a punição do mal é uma prerrogativa de Deus, uma das maneiras pelas quais ele o faz é através da administração da justiça pelo Estado, já que o magistrado é "ministro" de Deus para punir o malfeitor. O Estado tem também um papel positivo de promover e recompensar o bem na comunidade. Entretanto, nossa submissão às autoridades certamente não é incondicional. Se o Estado fizer mau uso da autoridade que lhe é conferida por Deus, para ordenar aquilo que Deus proíbe ou para proibir aquilo que Deus ordena, nosso dever de cristãos é claramente desobedecer-lhe a fim de obedecer a Deus.
Os versículos 8-10 voltam-se para o amor e ensinam que amar o nosso próximo é, ao mesmo tempo, uma dívida não paga e o cumprimento da lei. Pois, embora não estejamos "debaixo da lei", no sentido de que dependemos de Cristo para sermos justificados e do Espírito Santo para sermos santificados, ainda assim somos chamados a "cumprir a lei", obedecendo dia a dia aos mandamentos de Deus. Neste sentido não podemos contrapor o Espírito e a lei, uma vez que é o Espírito Santo que escreve a lei em nossos corações. E esta primazia do amor torna-se ainda mais urgente na medida em que se aproxima o dia da volta de Cristo. Nós temos de acordar, levantar-nos, vestir-nos e viver como quem faz parte desse dia (11-14).
Nosso relacionamento com os "fracos" é a parte que mais atenção recebe da parte de Paulo (14.1—15.13). Estes são, evidentemente, fracos na fé ou na convicção, e não fracos de vontade ou de caráter. O mais provável é que se trate de cristãos judeus que acreditavam que ainda tinham de continuar observando as leis, tanto as referentes à comida (o que é puro, o que é impuro) como as festas e jejuns que faziam parte do calendário judaico. O próprio Paulo identifica-se como um dos "fortes". Sua consciência educada lhe diz que alimentos e dias são coisas secundárias. Recusa-se, porém, a atropelar a consciência sensível daquele que é fraco. Sua exortação para a igreja em geral é que os irmãos "aceitem" os fracos assim como Deus os aceitou (14.1, 3) e que "aceitem-se uns aos outros" assim como Cristo o fez (15.7). Se eles aceitarem os fracos em seus corações e em sua comunhão, não irão desprezá-los nem prejudicá-los, forçando-os a irem de encontro a suas consciências.
A característica mais marcante dessas instruções práticas é que Paulo as fundamenta em sua cristologia, e em particular na morte, ressurreição e volta de Jesus. Os fracos são irmãos e irmãs por quem Cristo morreu. Cristo ressuscitou para ser seu Senhor e nós não temos o mínimo direito de interferir na vida dos servos de Jesus. De semelhante modo, ele virá para nos julgar; portanto, não devemos arvorar-nos juízes dos outros. Além do mais, temos de seguir o exemplo de Cristo, que não agradou a si mesmo mas tornou-se servo — e que, aliás, serviu tanto a judeus como a gentios. Assim Paulo deixa aos seus leitores essa belíssima visão quanto aos fracos e os fortes, quanto a crentes judeus e crentes gentios, que estão unidos uns aos outros por um "espírito de unidade" tão forte que "com um só coração e uma só boca" podem glorificar a Deus juntos (15.5-6). Para concluir, Paulo descreve o seu ministério de "apóstolo dos gentios", juntamente com sua política de pregar o evangelho apenas onde Cristo ainda não for conhecido (15.14-22); compartilha com eles os seus planos de viagem, que incluem visitá-los quando de passagem para a Espanha, mas só depois de ter levado para Jerusalém a coleta como símbolo da solidariedade entre judeus e gentios (15.23-29); e solicita as orações deles (15.30-33). E então recomenda-lhes Febe, que é presumivelmente a portadora da carta que ele envia a Roma (16.1-2); envia saudações a vinte e seis pessoas, citando-as uma por uma pelo nome (16.3-16) — homens e mulheres, escravos e livres, judeus e gentios, o que nos dá uma idéia da extraordinária "unidade na diversidade" desfrutada pela igreja de Roma; adverte-os contra os falsos mestres (16.17-20); envia recados de oito pessoas que se encontram com ele em Corinto (16.21-24); e depois expressa a sua doxologia final. Embora a sintaxe da doxologia seja um pouco complexa, seu conteúdo é maravilhoso. Ele capacita o apóstolo a terminar lá onde começou (1.1-5), uma vez que tanto a introdução da carta como a sua conclusão fazem referência ao evangelho de Cristo, à vocação de Deus, ao alcance de todas as nações e à convocação à obediência pela fé.
Fonte: John Stott – A Mensagem de Romanos



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