A tradição judaico-cristã prende-se tenazmente à idéia de que Deus se revelou para a humanidade de diversas maneiras, mas mais especialmente na comunicação preservada nos textos sagrados considerados autoritativos e, portanto, canônicos. Sem essa revelação, Deus não poderia ser conhecido de alguma maneira relevante; na verdade, ele não poderia ser conhecido de forma alguma em termos proposicionais. Por essa razão, a iniciativa e a revelação de si mesmo de Deus é essencial para qualquer definição sensível de teologia bíblica. Como e por que ele revelou a si mesmo são perguntas cruciais para a elaboração dessa teologia, pois é o corpo de textos entendidos como revelação que constitui a matéria-prima do discurso teológico.
Alinhada à tese, já discutida, de que Gênesis é o manancial de toda reflexão teológica subseqüente, é notável observar que as duas formas padrão de pensar a revelação de Deus na teologia clássica — revelação geral (ou natural) e revelação especial — aparecem no início das narrativas da criação. A afirmação: "No princípio Deus criou os céus e a terra" (ou seja, todas as coisas), reflete a revelação por meio das obras poderosas de Deus, isto é, a revelação natural. E "disse Deus" Gn 1.3; cf. 5-7,9-11,14,20,22,24,26,28,29), sugere a revelação por meio da palavra. As duas, a palavra falada e a obra criada, testificam a existência de Deus e, em última instância, o caráter, os propósitos e os objetivos dele.
A REVELAÇÃO PELA PALAVRA
O registro do que Deus fez e disse está nos textos que se declaram e são declarados pela antiga tradição judaica e cristã ser a Palavra de Deus. Essas declarações não são plenamente articuladas no início, mas apenas gradualmente, e serão examinadas conforme ocorrem. Por ora, basta buscar apenas nas próprias narrativas da criação indícios da apresentação de si mesmo por parte de Deus nas duas formas descritas acima. Deus, depois de dar nome a vários fenômenos como dia, noite e céu, voltou-se para os meios pelos quais eles se revelam. As¬sim, ele disse dos corpos celestiais: "Sirvam eles de sinais para marcar estações, dias e anos" (Gn 1.14) e "governar o dia e a noite" (v. 18). Todas as gerações da humanidade que consideram essas coisas, por bem ou por mal, tiram conclusões teológicas a respeito delas, pois elas, em algum sentido, declaram Deus (Sl 19.1-6; cf. Rm 1.18-23). Todavia, com a criação do homem e da consciência não existe apenas um ser que pode "ler" a revelação silenciosa das obras divinas, mas, sim, que pode ouvir o Criador mesmo, primeiro em tons audíveis e por outros meios sensoriais e, depois, em textos escritos.
A primeira expressão vocal registrada é a chamada ordem de criação dada por Deus à humanidade criada à imagem dele. E é uma palavra de bênção: "Sejam férteis e multipliquem-se! Encham e subjuguem a terra!" (Gn 1.28). É impossível saber como essa palavra foi transmitida — talvez por meio de sonho, visão ou até mesmo por expressão vocal. As cenas de conversa subseqüentes, sem dúvida, apóiam a última hipótese (cf. Gn 2.16,17; 3.3,9-19,22). O que o homem aprendeu sobre Deus não é apresentado como algum tipo de percepção ou dedução teológica fundamentada em evidências empíricas, mas como palavras ditas em fala comum e compreensível.
A revelação por meio da conversa comum ou da fala divina não típica como modo ou meio de transmissão continuou ao longo do período da história primeva (Gn 1—11). Parece que Caim (4.6) e Noé (6.13), entre outros, foram contatados direta e imediatamente pelo Senhor. Na ausência de alguma qualificação para o meio de comunicação, não há nenhuma razão a priori para supor que a comunicação tenha sido feito de outro modo que não o verbal. Na verdade, essas ocorrências são mencionadas em passagens muito posteriores da literatura do Antigo Testamento e até mesmo do Novo Testamento (Êx 3.4; Is 7.10; 1Sm 3.1-18; Mt 3.17; At 9.4-6). Todavia, com o passar do tempo, a revelação falada foi transmitida cada vez mais por canais secundários como visões e sonhos e, depois, por fim por meio de profetas.
Fonte: Eugene Merrill – Teologia do Antigo Testamento.
Nenhum comentário:
Postar um comentário