Já no chamado de Abraão pode-se ver algum indício da revelação por meio de visões e sonhos. O Senhor, após ordenar que Abraão deixasse Ur e, depois, Harã por uma terra que mostraria a ele, apareceu para Abraão pela primeira vez em Siquém (Gn 12.7). A raiz niphal do verbo usado aqui (rã'ãh) sugere ao pé da letra que Deus se fez visível. Não é declarado como ele é visto e, talvez, por visto queira-se apenas dizer que ele falou como em tempos anteriores. No entanto, contra essa possibilidade está a ocorrência da mesma forma verbal em Gênesis 18.1, passagem na qual o Senhor aparece de forma tangível na pessoa do anjo do Senhor que, na verdade, é igualado ao Senhor mesmo (Gn 18.10,13,17,20, etc). A revelação de Deus, pelo menos nesse caso, é feita por meio de um agente celestial.
O mesmo verbo é usado com referência às aparições do Senhor para Isaque (Gn 26.2,24), a segunda das quais aconteceu à noite, talvez, um indício de que Isaque o viu em sonho. Jacó também vivenciou uma aparição de Deus à noite enquanto aguardava com temor seu encontro com o irmão Esaú, com o qual se indispusera (Gn 35.1; cf.32.21). Jacó, como Abraão, testemunhou uma forma humana de manifestação divina com a qual lutou durante a noite (Gn 32.22-32). Embora o cenário noturno do encontro possa sugerir que fosse um sonho, os ferimentos físicos sofridos por Jacó como resultado do desacordo testificam o contrário. Claramente, Deus revelou-se em palavra e ato. Depois de seu retorno a Betel, Jacó teve uma segunda experiência de revelação de Deus. Ele apareceu para o patriarca e o abençoou, mudando seu nome para Israel (Gn 35.9,10). Na conversa posterior com José, na qual ele reitera a bênção que Deus pronunciou sobre ele e seus descendentes, Jacó estava consciente que, de uma maneira ou de outra, encontrara-se com o Deus Todo-poderoso (Gn 48.3,4).
Embora o Antigo Testamento, depois, ateste inúmeras vezes a revelação de Deus descrevendo-a como sua aparição, quase sempre ela está em conjunção com algum outro fator ou aspecto como a sarça ardente (Êx 3.2), a glória shekiná (Lv 9.23; Nm 14.10; 16.19,42; 20.6; Dt 31.15), o anjo de Iavé (Jz 6.12; 13.3,10), os sonhos (1Rs 3.5; 9.2; 11.9) ou as visões (Ez 1.1,16, etc). Há uma tendência obviamente discernível da revelação direta e livre por meio da palavra para uma revelação mediada por meio de vários canais secundários.
É bastante irônico o fato de que o primeiro relato de revelação em sonho retrate o governante pagão de Gerar, Abimeleque, que foi informado pelo Senhor em sonho que a mulher que estava para tomar em seu harém era a esposa de Abraão (Gn 20.3-7). Claro que as religiões do Oriente Próximo da Antigüidade acreditavam que esse era um meio de comunicação possível dos deuses, por isso, Abimeleque não ficou particularmente surpreso com o sonho. Talvez seja inesperado que o Senhor Deus dos hebreus revele-se para o pagão, mas não é de maneira alguma uma ocorrência única. O chefe dos padeiros e o chefe dos copeiros tiveram sonhos desencadeados pelo Senhor (Gn 40), como também o faraó (Gn 41), um soldado midianita cujo nome não é fornecido (Jz 7.13) e, o mais famoso, o rei babilônio Nabucodonosor (Dn 2; 4). Isso demonstra, entre outras coisas, que o Senhor é soberano além dos estreitos limites de Israel, agindo e revelando-se conforme quer. Na verdade, essa é exatamente a lição que Nabucodonosor aprende como resultado de seus sonhos (Dn 4.34-37).
Jacó foi o primeiro dos patriarcas bíblicos de quem se declara especificamente que teve revelação de Deus por meio de um sonho (Gn 28.10-15). A reação dele ao acordar é digna de nota, pois, na verdade, ele diz que não sabia que estava em um lugar em que se pudesse esperar a revelação de Deus. Por essa razão, ele chamou o lugar de Betel, pois, conforme observou, "[esse lugar] não é outro, senão a casa de Deus; esta é a porta dos céus" (Gn 28.17). Embora não devamos descobrir coisas demais nessa declaração, a referência a um lugar especial de revelação pode sustentar a noção de que se sentia que Deus estava associado particularmente a determinados lugares santos nos quais era mais provável que ele aparecesse (cf. Gn 32.30; 35.7,14; Êx 3.5; Dt 12.5,l4). Jacó, por sua vez, contou a respeito de outro sonho cuja localização permanece secreta exceto pelo fato de que aconteceu em algum lugar de Padã-Arã, onde morava, ou perto dali, um local bem distante da terra prometida (Gn 31.10,11). No entanto, mesmo aqui lhe foi dito no sonho para que voltasse a Canaã, ao lugar em que Deus se revelara em Betel (v. 13).
De todos os sonhos dos patriarcas, os de José são os mais famosos. A idade dele na época em que teve seu primeiro sonho, apenas dezessete anos, sugere que os sonhos de revelação não estavam limitados aos israelitas nem mesmo aos patriarcas, profetas ou outras pessoas de reconhecida liderança. Deus concedia seu dom de revelar a si mesmo a quem quer que ele quisesse. É desnecessário dizer que os sonhos de José não foram bem recebidos por seus irmãos nem mesmo por seu pai, mas o cumprimento deles no tempo certo validou sua autenticidade como revelação divina.
Em épocas posteriores, os sonhos gradualmente caíram em desuso como modos legítimos de revelação, em parte por serem cada vez mais associados às práticas pagãs e em parte por causa do surgimento da profecia. Desde a época de Moisés há, pelo menos, um leve indício de que os sonhos e as visões não poderiam permanecer no mesmo plano da revelação do Senhor concedida a Moisés (Nm 12.6-8). Isaías, de forma irônica, descreve os profetas de sua época como cegos e mudos, Eles são cães, diz ele, que "deitam-se e sonham; só querem dormir" (Is 56.10). É claro que essa não é uma acusação velada ao profetismo israelita, mas antecipa a ainda mais sarcástica declaração de Jeremias a respeito de sonhos de revelação conforme manifestada, pelo menos, por alguns dos profetas que conheceu:
"Ouvi o que dizem os profetas, que profetizam mentiras em meu nome, dizendo: 'Tive um sonho! Tive um sonho!' Até quando os profetas continuarão a profetizar mentiras e as ilusões de suas próprias mentes? Eles imaginam que os sonhos que contam uns aos outros farão o povo esquecer o meu nome, assim como os seus antepassados esqueceram o meu nome por causa de Baal. O profeta que tem um sonho, conte o sonho, e o que tem a minha palavra, fale a minha palavra com fidelidade. Pois o que tem a palha a ver com o trigo?', pergunta o Senhor" (Jr 23.25-28).
O contraste entre a palha inútil e o grão precioso enfatiza bem a deterioração do sonho de revelação por volta do século XVII talvez por causa da facilidade de ser fraudado e de ser uma ilusão.
A visão é semelhante ao sonho, as principais diferenças entre eles são: (1) o sonho era obviamente um fenômeno ligado com dormir ao passo que a visão podia e, com freqüência, ocorria em momentos em que a pessoa estava desperta; e (2) a visão é "concebida como apresentada aos olhos físicos". Abraão teve uma visão a respeito de um herdeiro prometido (Gn 15. 1), e o Senhor, em uma visão, disse a Jacó que ele não deveria ter medo de descer ao Egito (Gn 46.1-4). As visões, como os sonhos, não estavam restritas ao povo de Deus, conforme o exemplo do profeta pagão Balaão demonstra de forma clara. Este teve uma visão de olhos bem abertos (Nm 24.4), uma mensagem que ele sabia que viera do "Todo-poderoso" (v. 16). Contudo, as visões eram raras nas culturas fora dos círculos de Israel. Além de Balaão, as visões no Antigo Testamento estão ligadas apenas aos falsos profetas citados por Jeremias (Jr 14.14; 23.16), Ezequiel (Ez 13.6-9,23; 22.28) e Zacarias (Zc 10.2). Samuel teve uma visão do chamado de Deus quando as visões ainda eram raras (1 Sm 3.15; cf. v. 1). O texto, ao mesmo tempo, equipara a "palavra do SENHOR" às visões, sugerindo que até aqui a revelação de Deus foi, pelo menos em algumas ocasiões, transmitida dessa maneira. As visões, com o papel de Samuel de fundador da escola profética, tornaram-se muito mais fecundas; na verdade, elas parecem ter se tornado o principal meio da revelação divina por intermédio dos profetas. Poucos dos profetas canônicos deixam de atribuir seus oráculos a visões até mesmo no fim do período do Antigo Testamento quando as visões, como os sonhos, estavam de alguma maneira se tornando um meio não confiável de transmitir a verdade (Jr 14.14; 23.16; Ez 12.24; 13.6-9,16,23; 21.29; 22.28; cf. Is 1.1; Ez 1.1; 8.3; 40.2; 43.3; Mq 1.1; Ne 1.1; Dn 1.17; 4.5,10,13; Zc 1.8).
Fonte: Eugene Merrill – Teologia do Antigo Testamento.
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