Em inúmeras passagens, principalmente nas narrativas de relatos, aparece uma figura misteriosa conhecida como o anjo (ou mensageiro) de Iavé, como representante do Senhor ou, em poucas ocasiões, como sub-rogado dele. Embora alguns teólogos cristãos proponham que esse ser é o Cristo pré-encarnado, nada, no Antigo Testamento, sustenta essa noção. Nem é apropriado pensar em nenhum tipo de encarnação divina. O anjo era apenas isto: um porta-voz sobre-humano do Senhor mesmo. Do começo ao fim do registro do Antigo Testamento, as ocorrências dessa pessoa angélica tornam isso mais aparente.
Ele não aparece primeiro para Abraão nem para um dos outros patriarcas, mas para Hagar, a desprezada escrava de Sara. Hagar fora expulsa do acampamento de Abraão e conduzida para o deserto de Negev, no qual ela e seu pequeno filho Ismael se viram em grandes dificuldades (Gn 16.1-6). O anjo, sem qualquer apresentação de sua identidade ou natureza, encoraja Hagar a retornar para Abraão e, depois, promete-lhe: "Multiplicarei tanto os seus descendentes que ninguém os poderá contar" (v. 10). Assim, em algum sentido, o pronome na primeira pessoa equipara o anjo ao Senhor, o único que pode fazer tal promessa. Hagar deve ter entendido isso em algum grau, pois a história continua e diz que ela lhe diz; "Tu és o Deus que me vê" (v. 13). Alguns anos depois, Hagar é banida de novo, e mais uma vez o anjo vem em socorro dela, dessa vez "do céu" (Gn 21.17). Ele fala por Deus, e, depois, o narrador diz: "Deus lhe abriu os olhos" (v. 19). Embora o anjo não seja explicitamente chamado de Deus, a justaposição do anjo e de Deus demonstra, no mínimo, uma relação íntima entre eles.
Abraão é o próximo a se encontrar com o anjo de Iavé. Abraão, tendo recebido ordem de Deus para oferecer seu filho Isaque como sacrifício, estava para cravar a faca no corpo do filho, quando o anjo fala do céu (como fizera com Hagar) e o impede de fazer isso (Gn 22.11). Depois, ele fala uma segunda vez do céu, dizendo estas extraordinárias palavras: "'Juro por mim mesmo', declara o SENHOR, 'que por ter feito o que fez, [...] esteja certo de que o abençoarei" (vv. 15-17). Aqui, o anjo é praticamente equiparado ao Senhor. Em um incidente posterior, Jacó refere-se a ele como "o Anjo de Deus" (Gn 31.11), e ele é chamado mais uma vez de "o Deus de Betel" (v. 13; cf. 48.15,16).
A mesma teologia continua com a história da sarça ardente de Moisés. O anjo de Iavé aparece para ele (Êx 3.2), e, depois, o narrador diz: "O SENHOR viu que ele [Moisés] se aproximava para observar. E então, do meio da sarça Deus o chamou: 'Moisés, Moisés!'" (v. 4). Aqui, o "Anjo", "o SENHOR" e "Deus" parecem ser usados de forma intercambiável. O anjo revela-se mais uma vez em conexão com o êxodo, liderando os exércitos de Israel na travessia do mar (Êx 14.19). Na retomada da jornada do Sinai para Canaã, o Senhor promete que "um anjo" mostraria o caminho. É-lhe dito para carregar o nome do Senhor ("Nele está o meu nome"), associando, assim, o anjo ao Senhor, mas ao mesmo tempo fazendo distinção entre eles (Êx 23.21). Esse mesmo anjo comandaria os exércitos de Israel na conquista, expulsando as nações Cananéia da terra (Êx 33.2).
O caráter militar do anjo de Iavé fica aparente na história do profeta Balaão que, enquanto está a caminho para amaldiçoar Israel em Moabe, instiga a ira de Deus e, depois, encontra o anjo em seu caminho (Nm 22.22). O anjo permanece no lugar, como capitão dos exércitos do Senhor, com a espada empunhada, impedindo o profeta mercenário de realizar seu objetivo. A seguir, o Senhor abre os olhos de Balaão; ele vê o anjo e prostra-se em adoração. A coalescência do anjo e do Senhor, apenas implícita aqui, parece completa na advertência do anjo para Balaão: "'Vá com os homens [de Moabe], mas fale apenas o que eu lhe disser"' (v. 35). Portanto, o anjo era o Senhor ou, no mínimo, seu porta-voz.
O anjo aparece apenas mais duas vezes em algum tipo de narração extensa, as duas vezes na época dos juízes. Atropelada pela superioridade numérica dos midianitas, Israel, sob a liderança de Gideão, parece condenada até que o anjo do Senhor intervém oferecendo palavras de encorajamento a Gideão (Jz 6.11-24). Ele, apresentado primeiro como o anjo (w. 11,12), depois, é chamado de "o SENHOR" (vv. 14,16,18), exceto por Gideão que o toma por um ser humano e o chama de "Senhor" ('ãdôn; v. 15). Gideão, quando ordenado a oferecer sacrifício em vez de sua pretendida refeição de hospitalidade, começa a entender que seu convidado não é um homem comum. Na verdade, uma vez que o alimento é consumido sobre o altar, Gideão exclama: "Ah, SENHOR Soberano! Vi o Anjo do SENHOR face a face!" (v. 22). Gideão, sem intenção de se preocupar com admiráveis distinções teológicas, identifica o anjo como o Senhor mesmo.
Em uma perícope final recontando as circunstâncias do nascimento de Sansão, o anjo do Senhor figura mais uma vez de forma proeminente. A mãe de Sansão, privada de filhos, encontra o anjo que lhe assegura que teria um filho, embora este deva servir ao Senhor como nazireu (Jz 13.1-5). Ela supõe que ele seja um profeta ("Um homem de Deus"; v. 6) que tem aparência de anjo. Ela não relata como é isso, diz apenas que ele tem uma "aparência impressionante". Manoá, marido dela, toma a palavra dela pelo que ela viu e ora ao Senhor para que envie mais uma vez o homem de Deus. Quando o anjo retorna, o casal oferece-lhe uma refeição (como Gideão fizera) sem perceber que o anjo é "o Anjo do SENHOR"; mas o anjo recusa a refeição com esta advertência: "Se você preparar um holocausto, ofereça-o ao SENHOR" (V. 16). Desconfiado, Manoá pergunta o nome do anjo, ao que este replica: "Meu nome está além do entendimento" (v. 18). A seguir, Manoá acende o sacrifício e maravilhado observa o anjo ascender ao céu nas chamas. Assim, eles sabem que ele é o anjo do Senhor; e Manoá, prostrando-se em adoração, diz: "Vimos a Deus" (v. 22)! Na visão dele não há distinção entre o Senhor e seu anjo.
A aparente ambigüidade do testemunho bíblico em relação à natureza e ao papel do anjo do Senhor como agente revelador existe por causa da ausência geral de avaliação do conceito de um representante que ocupa o lugar de outra pessoa em um relacionamento tão íntimo que é praticamente idêntica a esta. Esse conceito é bem entendido nos assuntos diplomáticos em que, por exemplo, o embaixador de uma nação personifica tanto a nação que um ato de violência praticado contra ele pode ser considerado um ato de violência contra o Estado que ele serve. Claro que, ao mesmo tempo, o enviado, em essência, não é o mesmo que seu governo.
Já tratamos do assunto da essência e da natureza de Deus e observamos que o testemunho do Antigo Testamento aponta indubitavelmente para a invisibilidade transcendente dele. Ele, embora se comunique com sua criação, é totalmente diferente e distante dela. Esse hiato só pode ser preenchido pela intermediação, e essa intermediação é o que estamos descrevendo como revelação em todas suas formas. O anjo do Senhor, embora represente o Senhor quase ao ponto de se identificar com ele, não é Deus, mas apenas seu agente, embora um agente com poderes sobrenaturais e com um papel tipológico que, pelo menos, para os cristãos encontra cumprimento antitípico em Jesus Cristo.
Fonte: Eugene Merrill – Teologia do Antigo Testamento.
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