O desafio da não-resistência
Todos os que conhecem um pouco o cristianismo têm alguma noção do Sermão do Monte, proferido por Jesus provavelmente durante um longo período de instrução. A maioria das pessoas também sabe que ele contém a proibição “Não resistam ao perverso” e a ordem “Amem os seus inimigos” (Mt 5.39, 44). Não só isso, mas Jesus praticava o que pregava. Como escreveu o apóstolo Pedro, “Quando insultado, não revidava; quando sofria, não fazia ameaças” (1 Pe 2.23). Antes, orou pedindo que Deus perdoasse aqueles que o estavam crucificando (Lc 23.34).
Gerações, tanto de cristãos como de não-cristãos, têm sido desafiadas e inspiradas pela combinação sermão e exemplo, palavras e atos de Jesus - sua persistência e autocontrole, seu amor pelos inimigos e sua total isenção do espírito de vingança. Os reformadores radicais do século XVI (vários grupos anabatistas) e as igrejas pacifistas de hoje (e.g. os menonitas, quacres e irmãos unidos) dedicam-se ao pacifismo total, recebendo o mandato e a motivação do Sermão do Monte e do sofrimento de Jesus, conforme exemplificou em seu comportamento.
Meu objetivo neste capítulo é considerar três líderes do fim do século XIX ou início do século XX que confessaram ter recebido inspiração do sermão e do sofrimento de Jesus, a saber, o romancista russo, Leon Tolstói (1828-1910); o reformador social da índia; Mahatma Gandhi (1869-1948) e o defensor americano dos direitos civis, Martin Luther King Jr.(1929-1968).
Tolstói nasceu num lar aristocrático, teve uma juventude dissoluta e depois voltou-se para a escrita séria. Seus romances mais conhecidos continuam sendo Guerra e Paz e Anna Karênina, mas para nossos interesses precisamos considerar sua obra curta, Minha Confissão. Nela Tolstói descreve como num momento de crise pessoal ele releu o Sermão do Monte e, de repente, compreendeu (diz ele) o que a igreja inteira não havia compreendido em 1.800 anos.
Isso era o que Jesus queria dizer quando convocou seus seguidores para a não-resistência. É impossível crer em Cristo, continuou, e ao mesmo tempo “trabalhar pelo estabelecimento de propriedades, cortes legais, governos e forças militares...”, porque a polícia, as cortes e o exército usam, todos, a violência para resistir ao mal e são, portanto, incompatíveis com a lei do amor. Se tão somente os mandamentos de Cristo forem obedecidos literalmente, “todos os homens serão irmãos e todos estarão em paz uns com os outros”. Então, no último capítulo, defendendo-se contra a credulidade, trai seu conceito ingênuo de que todos os seres humanos são basicamente bons, racionais e amigáveis.
Mahatma Gandhi,ou “Gandhiji”, como referem-se respeitosamente a ele os indianos, é, claro, o pai da índia moderna. Tendo estudado Direito em Londres e o praticado na África do Sul, onde foi insultado por causa de sua cor, Gandhi voltou à índia em 1914 e liderou a Campanha de Desobediência Civil. Ele ansiava por uma índia livre do colonialismo, do materialismo e das castas.
Ainda criança, Gandhi aprendeu a respeito da ahimsa, “abster-se de ferir os outros”. Mas depois, na juventude em Londres, leu o clássico hindu, o Baghavad Gita, e o Sermão do Monte. “É esse Sermão que me fez gostar de Jesus”, disse, e sabe-se que refletia constantemente sobre ele, em especial através dos olhos de Tolstói. Na África do Sul leu O Reino de Deus está dentro de ti, de Tolstói, foi profundamente tocado por ele e, ao voltar para a índia, resolveu colocar em ação seus ideais. Ele descrevia seus meios de ação como satyagraha, sua melhor tradução seria “força da verdade”, a tentativa de conquistar os oponentes pelo poder da verdade e “pelo exemplo do sofrimento suportado voluntariamente”. “O estado representa a violência numa forma concentrada e organizada”, dizia. Assim, no estado perfeito que ele vislumbrava, a polícia ainda existiriam mas raramente usaria a força; a punição acabaria; as prisões seriam transformadas em escolas e o litígio seria substituído pela arbitragem. Em tudo isso Gandhi encontrava inspiração em Jesus, “embora não possa afirmar que eu seja cristão no sentido sectário”, disse, “o exemplo dos sofrimentos de Jesus é um fator na composição de minha fé imorredoura na não-violência que dirige todos os meus atos...”.
É impossível não admirar a humildade e sinceridade de Gandhi. Ainda assim, sua política certamente deve ser julgada irrealista. Ele disse que resistiria com uma “brigada de paz” aos invasores japoneses que se prenunciavam; ele instava os judeus a oferecerem resistência não violenta a Hider; e apelava aos britânicos para que parassem com as hostilidades. Mas, conforme comentou Jacques Ellul, Gandhi não havia considerado o contexto. “Ponha Gandhi na Rússia de 1925 ou na Alemanha de 1933. A solução seria simples: depois de alguns dias ele seria preso e nada mais se ouviria dele”.
Mas nosso maior desacordo com Tolstói e Gandhi, porém, não deve ser pelo fato de a posição deles ser irrealista, mas por não ser bíblica. Não podemos interpretar a ordem de não resistir ao mal, dada por Jesus, como uma proibição absoluta do uso da força (incluindo-se a polícia), a menos que estejamos dispostos a dizer que a Bíblia contradiz a si mesma e que os apóstolos não compreenderam Jesus. Ora, a Bíblia ensina (por exemplo, em Rm 13) que o estado possui autoridade divina para punir o malfeitor, ou seja, a “resistir ao perverso”, forçando-o a arcar com a penalidade de seu mal. Essa verdade não pode ser torcida, porém, para justificar a violência institucionalizada de um regime opressivo. Ela só justifica a “mínima força necessária” para deter malfeitores e os levar à justiça.
Fica claro, portanto, que a responsabilidade do estado é bem diferente da responsabilidade dos indivíduos. Em Romanos 12.17, se diz “não retribuam a ninguém mal por mal” (decerto um eco de “não resistam ao perverso”) e também “nunca procurem vingar-se, mas deixem com Deus a ira, pois está escrito: ‘Minha é a vingança; eu retribuirei’, diz o Senhor”. Em outras palavras, a punição é prerrogativa de Deus, e ele a exerce por meio das cortes judiciais, conforme Paulo segue escrevendo em Romanos 13.4, ou seja, que a autoridade (um representante devidamente autorizado do estado) “é serva de Deus, agente da justiça para punir quem pratica o mal”. Isso não é incompatível com o ensino e a conduta de Jesus. Ele foi enfaticamente contra a retaliação, antes, “entregava-se àquele que julga com justiça” (1 Pe 2.23). Para resumir essa antítese, Jesus não estava proibindo a administração da justiça, mas impedindo-nos de tomar a lei nas próprias mãos e obrigando-nos, pelo contrário, a amar nossos inimigos e a ser totalmente isentos de maldade e retaliação. Conforme se costuma dizer, a receita do diabo é retribuir o bem com o mal; a receita do mundo é retribuir o mal com o mal e o bem com o bem; a receita de Cristo é vencer o mal com o bem (Ro 12.21).
Uma pessoa que compreendeu essa distinção foi Martin Luther King Jr. Ele havia aprendido de Gandhi tanto quanto este havia aprendido de Tolstói, embora eu pense que ele compreendia o ensino de Jesus melhor que ambos. Fundador da Conferência de Liderança Cristã do Sul, dedicava-se à não-violência e liderou a famosa marcha a Washington em 1963, a que se seguiram em 1964 e 1965 os Decretos dos Direitos Civis. Por um lado, Luther King com frequência reconhecia sua dívida para com o Sermão do Monte. Por outro, ele reconhecia a necessidade da legislação, até de leis coativas, para de algum modo banir a discriminação racial.
Um dos sermões mais eloquentes de King, intitulado “Amar seus inimigos”, foi composto numa cela na Geórgia. Ele descrevia como “o ódio multiplica o ódio ... numa espiral descendente de destruição” e é “tão injurioso para a pessoa que odeia” quanto para sua vítima. O amor, porém, “é a única força capaz de transformar um inimigo em amigo”. Ele prosseguia aplicando esse tema à crise racial nos Estados Unidos. Por mais de três séculos os afro-americanos haviam sofrido opressão, frustração e discriminação. Mas King e seus amigos estavam decididos a “rebater o ódio com o amor”. Com isso conquistariam a liberdade e também venceriam seus opressores, “e nossa vitória será dupla”.
Fonte: John Stott - O Incomparável Cristo.
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