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Jesus e Seus Discípulos.

Assim como Jesus deve seu carisma a seu mestre João, ele o deu também a seus discípulos e discípulas. A vocação dos discípulos pertence nos evangelhos a seus primeiros atos.

As narrativas de vocação dos evangelhos.

Nos evangelhos encontramos três tipos de narrativas de vocação. Todas estilizadas, nenhuma apreende a realidade histórica sem antes vê-la partir de um determinado enfoque.

       O tipo marcano: Jesus chama seus discípulos diretamente de seu mundo de trabalho, como no caso de pescadores e de coletores de impostos (Mc 1,16-18.19s.; 2,13s.).

       O tipo da Fonte dos Ditos: o seguimento ocorre a partir de uma decisão de Jesus. Eles são testados a partir das consequências dessa decisão (Mt 8,19-22/Lc 9,59-62).

       O tipo joanino: as pessoas entram no seguimento de Jesus pela mediação de outras pessoas. André busca seu irmão Pedro, Filipe a Natanael (Jo 1,35ss.).

Sempre se pressupõe que os discípulos seguem a Jesus literalmente. Eles o acompanham em suas peregrinações pela Palestina. Que analogias há para esse tipo de relação entre mestre e discípulo?

Analogias de seguimento de discipulado no contexto

São consideradas principalmente duas analogias: a relação entre discípulo e mestre, dos rabinos, e a relação dos profetas para com seus seguidores:

1. A relação entre mestre e discípulo dos rabinos aponta para grandes diferenças em relação ao discipulado na tradição de Jesus. Elas são apresentadas resumidamente na tabela que segue:

Relação discípulo-mestre rabínica

Relação de Jesus com seus discípulos

Stabilitas loci em uma casa de ensino

Peregrinação na Galiléia e região

Limitação temporal: mudança de mestre é possível

O discipulado é uma relação constante

Formação consciente de tradição por meio de memórias

A formação de tradição é espontânea (exceções como o “pai nosso” talvez sejam possíveis)

Discipulado limitado a homens

Mulheres podem ser encontradas entre seguidores e ouvintes

 

2. A relação entre os profetas e seus seguidores: a analogia mais próxima para a vocação dos discípulos é a vocação de Eliseu por meio de Elias (1Rs 19,19-21).

Eliseu foi chamado em meio a sua atividade profissional. Antes do ingresso, ele quer despedir-se de pai e mãe, o que lhe é permitido, segundo a LXX e Ant8,254. Depois de ter abatido seu gado e ter usado seu arreio como lenha para o cozimento da carne, ele segue Elias. Deve-se notar que também entre os profetas de sinais do século I d.C. a expressão “seguimento” pode ser encontrada. Seus seguidores os “seguem” (etteoqai) até o Jordão (Ant 20,97) ou até o deserto (Ant 20,167). Uma vez aparece o termo akolouqein, o termo técnico neotestamentário para “seguimento” (Ant 20,188). De qualquer forma, não pode ser reconhecido no caso desses profetas de sinais um “grupo” especial (como os doze discípulos).

3. Não resta dúvida: as vocações dos profetas oferecem a analogia objetiva mais próxima para o discipulado de Jesus. No caso de Elias e de Eliseu, trata-se de vocação de um profeta do mesmo nível: um primeiro carismático reparte sua autoridade com um segundo. Também na relação de Jesus com seus discípulos trata-se da relação de carismáticos: Jesus atribui a seus discípulos um statuselevado. Na verdade, são mais que discípulos.

Características do discipulado

Há três características inerentes do discipulado: discípulos e discípulas tomam parte do papel marginal de Jesus, ou seja, seu seguimento é auto-estigmatização voluntária. Isto é também participação no carisma de Jesus: significa participação em seu envio e autoridade. Finalmente, o seguimento implica a promessa de alcançar um lugar de exaltação em Israel junto com Jesus.

1.Discipulado como auto-estigmatização. Quem quer ser discípulo de Jesus deve estar preparado a não somente partilhar sua condição de sem-teto (Mt 8,19). Ele ou ela deve expor de forma escandalosa diante da piedade da família seu vínculo a Jesus: mesmo o sepultamento do falecido pai não é importante (Mt 8,21). Quem é capaz de tal ato provocativo — uma violação rude do 4º mandamento — não deveria assustar-se se é hostilizado como seu mestre: “O discípulo não está acima de seu mestre... já que trataram de Beelzebul o dono da casa, com quanto maior razão dirão o mesmo os de casa” (Mt 10,24s.).

2.Discipulado como participação no carisma: os discípulos e discípulas tomam parte no envio e na autoridade de Jesus. Eles receberam de Jesus o dom de curar e a autoridade para expulsar demônios (Mc 3,14; Lc 10,9). São, da mesma forma que Jesus, enviados para a colheita (Mc 9,37s.). Emanam uma aura de salvação e de juízo. Sua bênção transmite uma espécie de proteção mágica para as casas que os recebem (Lc 10,5 par.). O mesmo acontece com sua maldição. Quando são rejeitados em uma cidade, terrível será a situação desta no juízo (Lc 10,10).

Destacam-se as regras de sobre o que levar consigo na missão. Os discípulos devem demonstrar ascetismo em seu envio. Ele é parte de seu ensino. Com esse “ascetismo missionário” eles ultrapassam regras análogas de equipamento para viagem no mundo daquele tempo. Pode-se fazer uma comparação com as “regras de viagem” dos essênios (Bell 2,125s) e a indumentária típica dos filósofos peregrinos cínicos.

Regras “de equipamento” da

tradição de Jesus

Regras de viagem dos

essênios

Características típicas dos

filósofos peregrinos cínicos

Abrir mão de sandálias [Q]

(concedidas em Mc)

Sapatos são ocultados

Andar descalço era frequente

Proibição de bastão [Q]

(concedido em Mc)

Armas para defesa

contra ladrões

Bastão como arma

Proibição de bolsa de mantimentos

Nada de bagagem de

viagem

Bolsa de mantimentos

era típica

Proibição de duas camisas

Gastar as vestimentas

Vestido de duas dobras

 

Mas isso não faz de Jesus um cínico judeu: ele e seus discípulos não demostram sua autarquia, mas a cercania do reinado de Deus e sua confiança no cuidado de Deus. Se há uma relação com o cinismo, trata-se de uma relação de contraste. Os discípulos devem distanciar-se claramente dele e superar sua “ascese”.

3.Discipulado é também participação na promessa: no dito dos “doze” é prometida uma posição de destaque aos discípulos no final dos tempos. Eles “sentarão sobre (doze) tronos e julgarão as doze tribos de Israel” (Mt 19,28/Lc 22,30). Segundo Salmos de Salomão 17,26, isso é tarefa do Messias: “Ele julga as tribos do povo que Deus santificou”. É prometida, portanto, autoridade messiânica aos discípulos. Eles devem formar uma coletividade messiânica. O messianismo tradicional é transformado por Jesus em um messianismo do grupo.

O fato de um grupo de doze discípulos (cf. Mc 3,13-19  e o dito dos “doze”) ter sido destacado deve ser esclarecido. Há tentativa de derivá-los da experiência pascal. Paulo narra uma visão do ressuscitado diante dos “doze” (ICor 15,5). Mais provável é que Pedro, com base em sua visão, tenha juntado os “doze”. Esses “doze” representariam uma totalidade, não necessariamente idêntica aos doze discípulos, uma vez que faltava Judas. Os doze novamente reunidos tiveram então uma aparição. É mais difícil conceber que a promessa de exaltação messiânica tivesse surgido apenas após a páscoa. Neste caso Judas não teria sido incluído entre os doze. O número doze pode ser entendido da seguinte forma: Jesus se reconhece como tendo sido enviado às doze tribos de Israel, não apenas ao resto que vive na Palestina, mas a toda a diáspora espalhada. Ele quer, com a ajuda dos doze, juntar Israel. O círculo dos doze representa o povo das doze tribos renovado e tem diante deste uma promessa especial. Mas não apenas os doze, e sim todos os discípulos tomam parte no envio de Jesus. Eles partilham desta forma tanto o papel marginal estigmatizado do pregador peregrino Jesus de Nazaré, como sua autoridade carismática no presente e no futuro. Ambos, estigma e carisma, se pertencem mutuamente: o poder de um comportamento socialmente desviante a serviço de uma nova visão de vida pode conduzir ao carisma, com o qual essa nova visão pode superar a forma de vida atual.

Fonte:O Jesus Histórico, Um Manual - Gerd Theissen, Annette Merz.

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