O Jesus de João é caracterizado por discursos longos, desorganizados, repetitivos e frequentemente alegóricos. Eles não versam principalmente sobre Deus, e certamente não mostram qualquer preocupação com o Reino do céu. Este tópico, chave do Jesus dos Sinópticos, só figura em uma ocasião — no diálogo com Nicodemos (3:3-5) — em todo o evangelho de João.
No Quarto Evangelho, os sermões de Jesus são inteiramente autocentrados; giram em torno da sua pessoa, do seu ensinamento e da suarelação pessoal com Deus e com os seus seguidores. O estilo impõe uma elocução senhorial elíptica que resulta frequentemente na incompreensão de todos. Suas palavras encontram a mesma reação de incompreensão ao se dirigirem a indivíduos previamente desconhecidos, como o líder judeu Nicodemos (Capítulo 3). Ou a mulher samaritana no poço de Jacó em Sicar (Capítulo 4); ou uma multidão judaica hostil junto ao mar da Galiléia, insultada por seu ensinamento sobre “o pão da vida” (Capítulo 6); ou grupos densos e toscos dos seus próprios seguidores que acham a sua palavra “dura” e impossível de entender (6:60). Mesmo o círculo íntimo dos doze apóstolos era frequentemente incapaz de captar o significado das suas palavras. Réplicas impacientes e cortantes de Jesus não são incomuns, Nicodemos foi repreendido: “És mestre de Israel e ignoras essas coisas?” (3:10). Sequer os apóstolos conseguiam escapar das queixas aborrecidas do mestre: “Há tanto tempo estou convosco e tu não me conheces, Filipe?” (14:9).
Diferentemente do Jesus dos Sinópticos, o Jesus do Quarto Evangelho é uma figura superior, impositiva e transcendente. Ele fala de cima para baixo e dirime equívocos. Quando lhe perguntam se é o Messias ou embaixador de Deus, ou ele assevera que é (4:26) ou se queixa: “Já vo-lo disse, mas não me acreditais.” (10:25) O Jesus joanino não é o profético “homem de Deus”, aquele que transmite os ensinamentos e preceitos divinos, com quem a tradição bíblica e pós-bíblica judaica nos tornou familiar. Ele é um estrangeiro misterioso, um ser celestial sob disfarce humano, que veio de cima e deveria reascender ao paraíso. No jargão contemporâneo, ele poderia ser chamado de ET. No idioma de João, ele é o Filho de Deus Pai no sentido metafísico pleno e não apenas metaforicamente, pois a Bíblia e a literatura pós-bíblica aplicam o título “filho” de Deus inicialmente a todo judeu e depois aos judeus pios em geral e a indivíduos especialmente escolhidos, como os profetas, os homens santos e o Messias.
Fonte:As Várias Faces de Jesus - Geza Vermes.
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