A Bíblia é infalível quando corretamente
interpretada. Quais os princípios que devem guiar nossas tentativas de
interpretar adequadamente a Escritura ou, em termos técnicos, de empregar uma hermenêutica
correta? Podemos identificar quatro princípios essenciais.
A Escritura
deve ser interpretada literalmente.
Este princípio, conhecido tecnicamente como o método gramático histórico, toma o sentido natural, direto, de um texto ou passagem como sendo fundamental. Esta abordagem “literal” deve ser cuidadosamente distinguida da “literalista”. Esta última interpreta as palavras da Escritura de modo rígido, sem fazer concessões a figuras de linguagem, metáforas, forma literária, etc.; para tomar um exemplo extremo: “Pois os olhos do Senhor passam por toda a terra, para cima e para baixo” (2 Cr 16:9, BV) ensina a onisciência de Deus e não que um par de olhos celestiais periodicamente varre todo o globo. Uma abordagem “literal” exige que interpretemos a Escritura:
1. Segundo o
significado original. A Palavra de
Deus é quase sempre imediatamente relevante à situação a que foi dirigida; é
preciso portanto descobrir tão completamente quanto possível o ambiente e
significado original antes de tentar relacioná-la a nós mesmos.
2. Segundo a
forma literária. A Bíblia é
composta de todo tipo de literatura: poesia, prosa, parábolas, alegoria (Ez
16), apocalíptica (revelação), fábula (Jz 9:8-15), etc. Estas coisas devem ser
sempre tomadas em consideração. Não queremos dizer com isso que uma seção poética,
por exemplo, não possa transmitir material verídico, mas significa que não
iremos interpretar material poético ou visionário do mesmo modo que uma
narrativa histórica ou passagens doutrinárias. Devemos ser também sensíveis ao
uso da metáfora e outras figuras de linguagem.
3. Segundo o
contexto. O ambiente de um
texto ou declaração na seção e no livro da Bíblia em que ocorre é fundamental
para a interpretação correta. Deve ser notado neste sentido que as divisões em capítulo
e versículo não são originais.
A Escritura deve ser interpretada pela Escritura.
“A regra infalível de interpretação da Escritura é a própria Escritura; portanto, quando surge uma questão sobre o sentido verdadeiro e completo de qualquer Escritura, ela deve ser pesquisada e determinada por outras passagens que falem mais claramente.” (Confissão de Fé de Westminster.) Este princípio, conhecido tecnicamente como o princípio da harmonização, reconhece a unidade e autoconsistência da Escritura, originárias de seu único autor divino. Ele pode ser ampliado em vários subtítulos:
1.
Interpretação segundo o propósito da Escritura. Isto se aplica á Bíblia como um todo (Jo 20:31; 2
Tm 3:15). Ela é dada para nos tornar “sábios para a salvação”. Calvino afirmou
certa vez: “Se você quiser aprender astronomia, ou qualquer outra arte
misteriosa, procure em outro lugar.” Este princípio também se aplica a cada
parte da Bíblia; devemos identificar a situação a que se dirige. Tiago, por exemplo,
escreve a pessoas que são negligentes quanto à expressão moral e social da fé;
em Gálatas, Paulo trata da situação oposta: as pessoas estavam dependendo de
seus próprios méritos morais e religiosos para ganhar o favor de Deus. Não é de
surpreender que os dois escritores digam coisas diferentes, embora
complementares.
2.
Interpretar à luz de outras passagens sobre o mesmo tema. Aplicamos este princípio quando lemos textos
doutrinários; examinamos para ver se um ponto difícil é explicado em outra
parte. Por exemplo, certos pontos obscuros do livro de Apocalipse ganham
sentido quando associados a outros livros proféticos da Bíblia.
3.
Interpretar o que vem primeiro à luz do que vem posteriormente e é mais
completo. A revelação bíblica
se desenvolve à medida que Deus revela a seu povo mais de si mesmo e de seus
propósitos. Em particular, o Novo Testamento interpreta o Antigo. “Cristo
cumpre a lei” e portanto o Antigo Testamento deve ser interpretado à luz deste
cumprimento. Assim também, as cartas do Novo Testamento interpretam o
Evangelho, porque todo o propósito de Deus, que tem seu clímax na morte e na
ressurreição de Cristo, deve ser visto na perspectiva do ensino apostólico. O
comentário de Calvino sobre Romanos é uma advertência criteriosa: “Se o
indivíduo compreendê-lo, uma porta segura se abre para que possa entender toda
a Escritura.”
A Escritura só pode ser interpretada pelo Espírito Santo.
A verdadeira compreensão não nos é natural; é dom de Deus (Mt 11:25; 16:17) mediante o Espírito Santo (Jo 16:13). Isto não nos isenta do esforço aplicado, nem implica em que possamos isolar-nos de outros cristãos em nosso entendimento da Bíblia. O Espírito Santo é um Espírito corporativo, habitando em todo o povo de Deus (1 Co 12:12s.). É tolice esperar que Deus nos ensine pela sua Palavra se negligenciarmos a maneira ordenada como nos traz sua verdade, inclusive o dom exercido pelos mestres por ele escolhidos. Este terceiro princípio hermenêutico envolve um profundo desafio espiritual. O Espírito de Deus é santo; portanto, o que compreendemos da sua verdade está menos relacionado com a capacidade de nosso cérebro do que com a extensão de nossa obediência. Quando escalamos uma montanha, a nossa visão do horizonte é relacionada com a altura a qual subimos, e não com o equipamento complicado que possuímos. “Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus” (Mt 5:8).
A Escritura deve ser interpretada dinamicamente.
Este princípio final é na verdade uma extensão do terceiro. O Espírito de Deus é um Espírito vivo; ele usa sua Palavra de acordo com seus grandes objetivos para o povo de Deus: sua regeneração e sua santificação. A hermenêutica bíblica não pode confinar-se à elucidação do verdadeiro significado contextual da Bíblia. A Palavra que extraímos das minas da verdade eterna deve ser trazida à superfície e aplicada ao presente. Depois de perguntar o que aquilo significava em sua própria época e contexto e o que significa à luz da Escritura como um todo, devemos indagar qual o significado disto para hoje — aqui e agora, na vida desta igreja, dessa pessoa e em minha própria vida?
Fonte: Estudando As Doutrinas da Bíblia - Bruce Milne.
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