Nossa
postura corporal evidencia o que acontece dentro de nós, determinando ao mesmo
tempo o nosso interior, porque somos um personagem integral, interior e exterior,
psíquico e corpóreo. Qual a posição do corpo das pessoas que oram? Destacaremos
três delas, porque surgiram sobre o chão bíblico: 1 — a prostração islâmica de rosto em terra; 2 — a atitude cristã de juntar as mãos, fechar os olhos, ajoelhar-se;
3 — a posição dos primórdios
cristãos, do adorador e da adoradora de cabeça erguida, olhos abertos, braços
levantados.
1. A atitude
muçulmana de oração evoca a submissão do súdito sob o poder
absoluto de déspotas asiáticos. A pessoa se prostra em terra diante deles,
oferece a nuca desprotegida para a execução ou para a clemência e se torna tão
pequena quanto possível. Esse antiquíssimo gesto de submissão expressa a religião
da dependência absoluta da vontade suprema. Contudo, nessa atitude há muito
mais: a pessoa se torna tão pequena quanto possível, encena sua própria
insignificância e assume a posição de um embrião no ventre materno. O que
acontecer de agora em diante, acontecerá segundo a vontade do Senhor. A vontade
própria foi revertida para o estado embrionário.
Entretanto,
de forma alguma essa posição de oração constitui apenas um gesto político. Por
temor e susto diante do abissal poder divino as pessoas atingidas no Antigo
Testamento “caem sobre o rosto”. Assim aconteceu com Abraão (Gn 17,3.17), Josué
(Js 7,6), Daniel (Dn 8,17), Moisés e Aarão (Nm 16,22) e com todo o povo de
Israel “perante o Senhor” (1Rs 18,39). De acordo com o Novo Testamento, Jesus
“caiu de rosto em terra” no Getsemâni (Mt 26,39), porque “Deus está distante”
(Mc 14,41). Seus discípulos prostraram-se “de rosto em terra” diante dele,
quando ele foi “transfigurado” por Deus sobre o monte (Mt 17,2.6). Tanto o afastamento
mortal de Deus como sua proximidade soberana sobrevêm às pessoas com pavor
insuportável. É por isso que se tornam tão pequenas, submetem-se
incondicionalmente e rendem-se integralmente. Unicamente a graça do Onipotente
lhes concede a vida.
2. É possível que a posição de oração da Igreja cristã ocidental tenha igualmente surgido de gestos de subordinação da
cultura germânica, apesar de que seja presumível que a cultura romana tenha
determinado mais a Igreja na Europa ocidental e que a Igreja hierárquica tenha produzido
seus próprios gestos de rendição. Que fazemos quando nos ajoelhamos na oração,
juntamos as mãos, inclinamos a cabeça e baixamos os olhos? Voltamo-nos para dentro
de nós, assumimos a postura de um penitente e estamos encurvados em nós mesmos
como na dor. Encenamos nossa impotência, nossa insignificância e nossa
rendição. Tornamo-nos menores do que somos e parecemos abrigar-nos diante da
sublime alteza de Deus e de seus representantes na terra. Jamais os súditos
podiam olhar nos olhos de seus senhores. Quando esses apareciam, aqueles tinham
de baixar os olhos, de forma a não poder reconhecê-los. Juntar as mãos mostra-os
desarmados e incapazes de um ataque súbito. As mãos juntas praticamente
conservam-se presas uma à outra. Dobrar os joelhos assinala a veneração
prostrada e constitui uma expressão de profunda humildade. Demonstramos nossa
própria fraqueza quando nossos joelhos fraquejam e caímos sobre eles diante da
supremacia do Onipotente.
Nas
tradições bíblicas expressa-se com o ajoelhar-se que o corpo cai por terra e o
espírito se eleva em reverência a Deus: “Entrai! Vamos inclinar-nos,
prostrar-nos de joelhos diante do Senhor que nos fez!” (Sl 95,6). Com esse
gesto também é anunciada a soberania universal de Cristo para a honra de Deus,
o Pai: “ao nome de Jesus todo joelho se dobre” (F1 2,10). No entanto, quando
observamos como oram as pessoas encolhidas e curvadas em si, lembramo-nos da
figura agostiniana-luterana do pecador: “O ser humano retorcido sobre si mesmo”
(homo incuvatus in se). Ele é tudo
menos uma figura redimida. Quando uma pessoa está tão vergada sobre si mesma,
não pode respirar livremente. Parece que está carregando a si própria como um
grande peso. Nessa modalidade de oração, evidencia-se uma religião de
interiorização que deprime. Os sentidos estão cerrados. Solitário, o ser humano
busca a Deus no próprio íntimo, em seu coração ou na alma.
3. Encontramos uma
atitude de oração totalmente diferente entre os
adoradores e as adoradoras da primeira Igreja, como retratada
nas catacumbas de Roma e Nápoles. Estão de pé, a cabeça erguida e os olhos
abertos. Seus braços estão estendidos para o alto, as mãos abertas para cima. É
a atitude de uma grande expectativa e da prontidão amorosa para receber e
abraçar. Os que se abrem para Deus nessa atitude são pessoas livres. Por isso
estão eretas, levantaram a cabeça e olham para o alto de olhos abertos.
Praticamente crescem além de si próprias e tornam-se grandes. Os braços erguidos
expandem o peito para a respiração. A posição ereta é o ponto de partida para
movimentar-se no recinto e convida a caminhar, andar e dançar. Quem ora nessa
posição ora sobretudo pela vinda do Espírito Santo: “Vem, Espírito Criador...”
É a postura dos sacerdotes ortodoxos na epiclese. Por isso não é sem razão que
o movimento pentecostal retomou e pratica essa atitude de oração.
Suponho
que Jesus ficou nessa posição diante dos discípulos naquele monte, sobre o qual
aconteceu a “transfiguração”, pois “seu rosto resplandeceu como o sol” (Mt
17,2). Essa será também a atitude das pessoas que estão cheias da fé messiânica
e esperam, nas incertezas do futuro, pela vinda do Redentor: “Erguei-vos e
levantai a cabeça, pois a vossa libertação está próxima” (Lc 21,28).
De
olhos abertos olham para o futuro pessoas para as quais orar significa vigiar. Vigiar num mundo no qual tantas
pessoas estão como que “anestesiadas” por medo das possíveis e possivelmente
inevitáveis devastações (nuclear numbing
e ecological numbing [insensibilidade nuclear e ecológica]). A atitude
cristã primitiva dos adoradores e das adoradoras mostra a fé cristã como aberta
aos sentidos e perceptível como a “religião da liberdade”. Também por isso encontramos
nas catacumbas um número surpreendente de mulheres nessa posição, que não
expressa humilhação, mas grandeza e amor-próprio. A postura ereta diante de Deus
é o elemento mais surpreendente e totalmente incomparável. Deus já não é temido
como superpoder e já não é enaltecido como senhor do céu pela auto-humilhação.
Aqui Deus é como o sol que se levanta e ilumina os que estão erguidos, ou como
a chuva, que é recebida pela terra seca e faz com que tudo verdeje e se torne
fértil (Mt 5,25). Aqui Deus é — dito sem metáforas — a ruah Jahve, a respiração da vida, que vivifica, bem como a sabedoria
do amor pela vida. Quem ora dessa maneira expõe-se ao sopro do Espírito Santo e
é impelido pelo Espírito. Isso constitui liberdade incomparável diante de Deus,
com Deus e sobretudo em Deus.
Quando
contemplamos uma após outra as três atitudes de oração na sequência aqui
apresentada, e as exercitamos em nosso próprio corpo, então transparece para
nós claramente um movimento, adaptado
ao corpo, que é típico para muitas histórias de Jesus nos evangelhos. Pessoas vêm
até Jesus, humilhadas, encurvadas e aleijadas, caem diante dele “com o rosto em
terra” e pedem pela cura. E Jesus os levanta. Eles se abrem. Suas costas se
endireitam. Não erguem mais os olhos de sua miséria para as demais pessoas, mas
encaram-nas diretamente. Tornam a ver. Podem andar novamente. Conseguem
novamente amar sua vida. Riem e rejubilam-se e louvam o Deus de Israel (Mt
18,30s). Um belo exemplo é a mulher curvada que foi levantada, em Lc 13,10-17:
“Impôs-lhe as mãos: Imediatamente ela ficou ereta e se pôs a dar glória a Deus”.
Com a força que ela obtém de Jesus ela mesma se endireita e glorifica a Deus
com suas próprias palavras.
Quando
começamos a orar numa derrota da vida, abatidos por grande decepção ou luto
infinito, então é benéfico começar pela primeira posição do corpo, prostrar-se
sobre o rosto, enrolar-se como uma criança no ventre materno, colocar as mãos
diante do rosto e chorar, para deixar sair a dor e a raiva. Depois erguemo-nos
e ficamos de joelhos, perscrutando nosso íntimo na súplica a Deus por sua
proximidade. Contudo, a cura começa somente quando nos levantamos totalmente,
respiramos fundo, erguemos as mãos ao alto e experimentamos de olhos abertos a
chegada do Espírito vivificante. Pode-se exercitar essas três atitudes de
oração sozinho, para si, ou em comunhão com pessoas de confiança. Podemos
dançá-las ou desenhá-las acompanhados de música de meditação. Podemos
acompanhá-las com nossa própria voz, gemendo, suplicando e rejubilando-nos. O
importante é que, na troca dessas atitudes de oração, prestemos atenção à
linguagem de nosso próprio corpo e entremos em sintonia com ela. Podemos também
pronunciar as três primeiras preces da oração do Pai-nosso nessas três
posições. Então sentiremos como as atitudes do corpo as interpretam
diferentemente. Será que a postura das adoradoras não é a linguagem corporal
que melhor as interpreta?
Transformaste
meu luto em dança, traje de luto mudaste em traje de festa.
Por
isso a alma te canta sem cessar; Senhor, meu Deus, eu te darei graças para
sempre. (Sl 30,12s).
Na
“ciranda” são dançadas experiências conjuntas de Deus. Dançar diante dos deuses
para alegrá-los e alegrar-se neles é usual em todas as religiões cultuais.
Demonstram-no ainda hoje as dançarinas nos templos da índia e os protestos
dançados na África. Também Israel dançava suas experiências de Deus: “... e
Miriã, a profetiza, pegou o tamborim. As mulheres todas as seguiram, dançando e
tocando os tamborins” (Ex 15,20). Contudo, o povo também dançou em volta do
“bezerro de ouro”, até que Moisés destruísse esse ídolo do poder (Ex 32,19). No
tempo messiânico da salvação, Jeremias exclama as palavras de Deus: “De novo
ataviada com teus tamborins acompanharás a ciranda do povo em festa. As jovens,
então, vão dançar e se expandir” (Jr 31,4.13). Deus é “louvado com tambor e
dança” (Sl 150,4). Na dança da ciranda comunitária é exaltado o nome do Senhor.
A circunstância de que desde o início da Idade Média ainda é cantada a oração
na igreja, mas não mais dançada, constitui um empobrecimento da linguagem corporal.
Como pode o corpo ser um “templo do Espírito Santo” se ele enrijece e não pode
mais se mover? Pessoas movidas pelo
Espírito de Deus se movimentam, e os que experimentam graça movem-se com graça.
Fonte: A Fonte da Vida - Jürgen Moltmann.
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